Conto de Cinema, Hong Sang-soo
- Frederico Machado
- 3 de mai. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 1 de abr.
Memória: armazenamento de informações e fatos obtidos através de experiências vividas ou ouvidas.
Conto de Cinema é um pequeno grande filme que se assemelha muito a um ato amoroso, sensível, íntimo, que retrata uma experiência do amor. Reduzí-lo a um mero exercício metalinguístico é desencorajar uma leitura mais aprofundada do filme.
A história é sobre um romance juvenil e pueril. Um jovem homem encontra em uma rua, enquanto anda, a sua ex-namorada. Convida-a para irem a um pequeno bar. Após beberem muito, conversarem, depois beberem novamente, ficam juntos e decidem fechar um pacto: suicidarem-se juntos. Como todos os romances juvenis há momentos de sexo, de desconforto, mas também momentos singelos. Querem levar esse pacto de maneira mais inocente possível. O suicídio como uma brincadeira. O filme aparenta um descontrole sobre tal ato que por vezes pensamos que os personagens são idiotas ou apenas infantilizados. Mas o ritmo segue fluido, singelo. Porém, com a não realização do ato, por desistência da namorada, a primeira parte do longa que estamos assistindo termina. Aí vem a ruptura. Descobre-se, nós, os espectadores, de maneira tão natural e verrossimel, como se nós fizéssemos parte da brincadeira do diretor, que algo é quebrado, talvez a própria estrutura do cinema como um simples espetáculo narrativo. É um golpe tão engenhoso e natural. Algo como uma coreografia que nos choca com sua beleza, como um musical de Vincente Minnelli, ou mesmo como o galopar de cavalos em panavision de um John Ford. Ou seja, memórias afetivas de cinéfilos numa sala escura.

A segunda parte do filme começa com um espectador saindo do cinema. Ele assistiu ao filme que todos nós assistimos. O filme sobre suicídio realizado com uma leveza de um apaixonado. Descobrimos também que quem o estava assistindo, junto com todos nós, é outro personagem, um jovem cineasta amigo do diretor do curta em questão, depois ex-amigo e depois rival de sonhos. Descobrimos também que o curta é baseado em situações do passado desse personagem. E mais: que o diretor do curta está a beira da morte. Quem sai da sala de projeção onde exibia o curta também é a atriz do filme, talvez o grande mistério do filme. E continuam as bebedeiras dos personagens, encontros dos amigos, conversas sobre cinema, sobre o amor pelo cinema.
As conversas que Hong Sang-Soo, o diretor de Conto de Cinema, propõe para seu cinema e o torno dele, é filmado de maneira tão potente e desconcertante pela sua simplicidade que chega a ser genial. Sempre em perfis, seus personagens simulam gestos e pausas. Os diálogos são extensos e naturalistas. Sua câmera é trôpega paracendo que o fotógrafo da obra também bebe. Os zooms desconcertantes por serem inesperados e até certo ponto desconexos e sem principios. Mas o que é mais fabuloso, é que o cineasta cria uma obra extremamente pessoal, composta de filmes com o mesmo tema que dialogam entre si. Parece ser sempre o mesmo filme que realiza, com pequenas variações. É um fantasma onipresente na narrativa e também um amigo íntimo de seus personagens.

Acredito que o cinema de Hong Sang-Soo se assemelha muito com o de outro mestre: o tailandês Apichatpong Weerasethakul. Pode-se estranhar essa comparação. Enquanto o cineasta tailandês é adepto a um rigor estético que limita e ao mesmo tempo expande seu cinema para os rumos das artes plásticas, o cinema do coreano Hong Sang-Soo, é do cotidiano, das falhas sem nenhuma objeção e do naturalismo. Mas eles se igualam no que é mais interessante: na concepção da descoberta da estranheza do mundo e no adaptar-se de um ser humano ao outro. O que liga os dois cineastas é a indagação e o ato de criação pessoal, além do extremo amor pelo cinema.
Os filmes do coreano são declarações de amor regados a álcool, conversas entre amigos, associações fantasmagóricas. e muita relação com o ato de criar. Seus personagens são cineastas, técnicos, atores e atrizes. Muitos alter-egos do cineasta, que singularmente cria uma das mais importantes e despretenciosas obras do cinema moderno. Uma procura da memória e da lembrança resignado e descoberto em detalhes. Apichapong, ao contrário, cria um fluxo de lembranças e memórias dos mais diversos sentidos com seus filmes. Tanto um como o outro, fazem cinema com uma fantasmagoria tão própria dessa arte, e que infelizmente, vem se tornando um mar de clichês nas lentes de cineastas menos talentosos.
Conto de Cinema foi a primeira grande obra do coreano que já tem uma obra extensa com obras primas como Na Praia a noite sozinha, Certo Agorá, Errado Antes e Água, filme rodado todo fora do foco em um exercício arriscado, mas, mais uma vez, extremamente simples. Conto de Cinema é uma ótima entrada para o universo do diretor.
Em determinado momento, próximo ao final do longa, um personagem fala que ninguém vai compreender o filme. É ao mesmo tempo um fato, e uma anedota. Instigante, a obra de Hong Soo é a sua própria relação amorosa com seus filmes.
Comments