Noites de Circo, Ingmar Bergman
- Fernando Ramos
- 5 de abr.
- 9 min de leitura
Em 1953, Bergman realizou seu décimo terceiro filme: Noites de Circo. Embora já bastante experiente enquanto cineasta, ator e dramaturgo, é considerado sua primeira obra-prima. Motivos não faltam. Foi sua primeira colaboração com o fotógrafo Sven Nykvist, com quem realizaria dezenas de filmes durante mais de três décadas. Foi a primeira obra na qual radicalizou seu peculiar uso do close-up. Assim, cristalizou seu estilo cinematográfico, que antes ainda trazia resquícios da linguagem teatral. O foco nas mínimas nuances de expressão do rosto dos atores carregou seu cinema de entrelinhas e silêncios eloquentes, deixando para trás a ênfase corporal do teatro. A sondagem psicológica de seus personagens ganhou maior profundidade. O próprio Bergman considera Noites de Circo seu melhor filme até então e, não à toa, o mesmo antecipa temas, técnicas e cenas de clássicos como O Sétimo Selo (1957) e Persona (1966). No entanto, o filme não obteve o sucesso de bilheteria almejado e, talvez por isso, tenha sido lançado nos Estados Unidos sob o título apelativo Naked Night. Em tempos de macarthismo e censura ao cinema, as curvas voluptuosas e o decote exacerbado de Harriet Andersson deram o que falar. Em seu segundo filme com o diretor sueco, aos vinte anos, a atriz reunia a inocência do rosto angelical ao corpo escultural de femme fatale. Um crítico em particular escreveu algo que entristeceu Bergman: “I refuse to make an ocular inspection of Mr. Bergman’s latest vomit.” Como sabemos, muitas vezes, críticas negativas evidenciam o vanguardismo da obra.
Noites de Circo traz um dos temas favoritos de Bergman: a humilhação. Mas, diferente de outras obras-primas sobre esse tema, como Ladrões de Bicicleta (1948) e Umberto D. (1952) de Vittorio de Sica, Bergman não encara a humilhação como um martírio individual e subjetivo, mas um carma universal, inerente à condição humana. Para tanto, sujeita diversos personagens a esse sentimento – por vezes, fazendo-os alternar entre sujeito ativo e passivo das humilhações, estabelecendo um denominador comum que ressoa a contundente visão de mundo da obra. O filme ampara-se no duelo entre forças antagônicas nas relações afetivas e sociais. Dentro de cada elo, uma hierarquia, de onde emana a gangorra sentimental que polariza sádicos e masoquistas, fortes e fracos. Assim, a beleza e sensualidade de Anne – personagem interpretada por Harriet Andersson – são contrapostas à feiura e brutalidade de Albert, dono e domador do circo e também seu marido. Essa união improvável só se torna crível diante da inocência de Anne, que não se enxerga da mesma forma que os outros, bem como por conta de seu instinto materno. Da mesma forma, Bergman contrapõe a calma e o conforto da residência fixa às intempéries e rusticidades do lar itinerante. A nobreza e intelectualidade do teatro à vulgaridade e superficialidade do circo. A alegria efusiva do espetáculo circense à miséria e melancolia de seus bastidores. A masculinidade feminina de Anne à feminilidade masculina de seu amante Frans. O desespero de Albert à tranquilidade de sua antiga esposa, Agda.

A fotografia também evidencia essa complementaridade ou indissociabilidade dos opostos por meio da predominância do chiaroscuro nas sequências dentro do teatro ou nos espaços do circo. O mesmo só é interrompido em poucas ocasiões: por exemplo, na brancura da superexposição na história trágica do palhaço Frosty e sua esposa Alma; e na neutralidade da luz dentro da casa de Agda. A primeira ressalta o brilho luminoso da memória e, a segunda, a atmosfera pacífica do lar sob domínio da mãe. Ali, não há contraposição nem extremos. Fica claro o uso semântico da iluminação, trazendo três tipos de espaços simbolicamente distintos, cada qual com seu conceito de luz claramente demarcado.
O primeiro episódio de humilhação chega com a história do palhaço Frosty e sua esposa Alma, contada para Albert pelo condutor de sua carruagem. Certo dia, um batalhão de militares fazia um exercício de tiros de canhão nas margens de um rio, perto do acampamento de outro circo. Alma resolve nadar nua em frente aos soldados, que logo entram na água com ela. Frosty chega, tira a roupa de palhaço e carrega Alma nua em seus braços, debaixo das risadas dos soldados, vencendo o martírio das pedras pontiagudas sob seus pés descalços. Até que cai em prantos diante da humilhação pública, tendo de ser carregado de volta ao acampamento, aguçando o instinto materno de Alma, num episódio traumático que marcou sua vida. Fica clara a hierarquia entre soldados e circenses, entre a sensualidade selvagem da mulher e a impotência do seu companheiro. A brancura da luz nessa cena pretende castigar os olhos de quem viveu ou se lembrou do ocorrido. Tal cena traz a maior carga poética e simbólica do filme, sendo um dos momentos mais emblemáticos na filmografia de Bergman. Ele dirige essa sequência parcialmente em cinema mudo, com toque acentuado de expressionismo, fazendo uso do som dos canhões para cumprir a função de trilha sonora, disparando as notas ritmadas do desespero do palhaço – frágil – diante da virilidade fálica dos canhões.
No caso de Albert e Anne, os problemas começam com as dificuldades financeiras vividas pelo circo. Na última cidade, venderam os figurinos para não passar fome. Na nova cidade, a mesma onde mora Agda e os filhos de Albert, esse resolve pedir figurinos emprestados ao diretor do teatro local. Chegando lá, Albert diz para Anne que sorria, que arfe o busto com a respiração e deixe que vejam suas pernas. Ele mesmo planta a semente da futura traição. São humilhados pelo diretor, que diz que os figurinos voltariam cheios de piolhos. Diz que, enquanto no teatro se faz arte; no circo se faz, apenas, artifício. E que os circenses arriscam somente suas vidas, enquanto no teatro se arrisca o orgulho e a vaidade do artista; dando a entender que, para um grande artista, a perda do reconhecimento seria pena muito maior que a morte. Embora saibamos que essa não é bem a verdade. A vida vale mais do que a vaidade, mesmo a despeito da humilhação. Essa é a grande mensagem de Noites de Circo.
Mas o diretor acaba resolvendo emprestar os figurinos, interessado nas curvas de Anne. Abre mão do dinheiro, pedindo em troca apenas ingressos para o circo. Enquanto Albert vai checar os figurinos, Anne e Hans, um belo, altivo e delicado ator, entreolham-se longamente. Hans faz juras de amor, pede Anne em casamento, fala mal de seu marido e tenta beijá-la à força, ao que Anne morde seus lábios e se esquiva. Hans pergunta a Anne qual o seu preço – a terceira humilhação. Ela diz crer que ele nunca foi capaz de satisfazer uma mulher. Manda que se ajoelhe. Ele faz isso e ela diz que agora merece um beijo. Mas logo ela se arrepende, temendo se apaixonar. Hans vai embora, pouco antes que Albert chegasse de volta. De posse dos figurinos, os circenses fazem o cortejo pela cidade divulgando o espetáculo daquela noite, mas logo chegam os policiais para expulsá-los da ruas: a quarta humilhação.
Quando chegam em sua carruagem, Anne demonstra-se nervosa e insegura, pois nesse mesmo dia, Albert vai visitar Agda e os filhos. Anne teme perdê-lo, suspeitando que se cansou dela e da vida no circo. Por vingança, resolve visitar Hans no teatro enquanto Albert está fora. Ambos serão novamente humilhados. Albert é humilhado ao quase não ser reconhecido pelo filho mais velho, que também responde negativamente à sua pergunta sobre se ele gostaria de trabalhar com seu pai no circo. Depois, Agda nota que ele não usa camisa debaixo do paletó, apenas os punhos da mesma para disfarçar. Albert fica sem graça, ela oferece dinheiro a ele, que recusa. Ele come na cozinha, depois ela serve uma bebida e costura os botões despregados de seu paletó, enquanto diz para Albert que, quando ele a deixou, seu amor desapareceu do dia para a noite. E que é muito grata a ele pela paz e tranquilidade que se instalaram em sua vida desde então. Albert reclama da calmaria excessiva daquela cidade, dizendo que, para ele, era um vazio. Agda diz que, para ela, era a paz. Ela agora vive bem sendo a única vendedora de tabaco na cidade. Albert pede a Agda que o aceite de volta, pois está velho e cansado do circo. Diz que pode vender os animais e carruagens e chegar com dinheiro de volta para casa, além de ajudar na loja de tabaco. Mas Agda não arreda o pé. A visita foi mais um episódio de humilhação em sua vida e a quinta humilhação do filme.
Ao mesmo tempo, Anne se humilha e é humilhada por Hans. Dessa vez, ela diz que está cansada do circo, que não precisam se casar desde que cuide dela e logo cai em seus braços. Hans desfaz do cheiro de suor e perfume barato de Anne, zomba de sua maquiagem, dá a ela um perfume, que ela passa depois de tirar a parte de cima do vestido. Anne diz a ele que é muito forte e ágil, tiram uma queda de braço, mas Anne perde e cai no chão, quando Hans agarra ela, ao que Anne se esquiva. Então, Hans arma uma chantagem: esconde a chave do quarto, impedindo-a de sair. Anne teme não chegar de volta em tempo da apresentação. Então, Hans oferece uma joia caríssima que sustentaria Anne por um ano se fosse vendida. Assim, poderia abandonar o circo. Com tais artimanhas, Hans leva Anne para a cama. Apenas para que ela descubra na joalheria que foi enganada: a tal joia não vale absolutamente nada. Sexta humilhação. Voltando da casa de Agda, Albert vê Anne saindo do teatro e entrando na joalheria. De volta na carruagem, Albert confronta Anne que, depois de algumas negativas, acaba admitindo ter dormido com Hans. Sétima humilhação. Albert diz para Anne que ambos estão presos no mesmo inferno. Diz que a vida no circo é uma sentença contra eles. Pega a arma, cogita se livrar de todos que fizeram mal a ele, depois aponta para a cabeça de Frosty e logo para a própria cabeça, mas resolvem sair da carruagem e notam que há festa e cantoria ao redor: alegram-se e saem bêbados pelo acampamento. Mesmo assim, Albert não deixa de humilhar brevemente o anão, descontando a raiva de sua humilhação: a oitava. A pulsão de vida contraposta à pulsão de morte; às vezes, tão próximas, que chegam a se dar as mãos. Na proximidade entre cenas trágicas e cômicas, oscilam as nuances da tragicomédia.
Enfim, é chegada a hora do espetáculo circense. A trupe teatral chega atrasada. Hans vem acompanhado de uma das atrizes. Quando Anne entra no picadeiro vestida de preto sobre um cavalo preto – quiçá em luto, Hans começa a gritar insinuações vulgares sobre Anne na frente de Albert. Nona humilhação. No fundo da plateia, alguém joga um objeto no picadeiro, assustando o cavalo e derrubando Anne. Décima humilhação. Hans escancara o riso. Então, Albert estrala o chicote de doma, arrancando o chapéu de Hans, ao que todos riem. Quando Hans vai tirar satisfação, Albert chuta sua bunda, derrubando-o. Décima primeira humilhação. Hans dá um tapa na cara de Albert e o diretor do teatro interrompe, exigindo um duelo de punhos entre os cavalheiros. Albert leva a pior, principalmente depois de Hans jogar a serragem do chão do picadeiro nos seus olhos. Décima segunda humilhação. Anne tenta bater em Hans, mas é segurada pelos colegas. Frosty encerra o espetáculo. Assim como Alma diante da humilhação de Frosty, Anne agora transborda em compaixão por Albert. Mas esse logo se tranca sozinho e tenta dar um tiro na cabeça: a arma não dispara. Checando a mesma, ele acaba disparando, dessa vez de verdade, no espelho à sua frente. Nem mesmo se matar ele consegue. Décima terceira humilhação. Furioso, resolve fazer o que um dos mambembes já havia cogitado: atirar no urso que faz o número com Alma, para que não passem fome. Albert arrasta Alma consigo até a jaula do urso e, de forma indigna e humilhante, dispara contra o animal na frente de Alma, humilhando ambos ao mesmo tempo: décima quarta humilhação. Bergman enquadra a cena de dentro da jaula, na subjetiva do urso, fazendo com que o espectador sinta-se também alvejado. Albert vai até o estábulo e, no auge de seu colapso nervoso, abraça um dos cavalos, logo caindo ao lado de suas patas. Seu sofrimento é bestial; assim, apenas um animal poderia redimi-lo. Destroçado, ergue-se e ordena que coloquem as ferraduras nos cavalos: é hora de partir.
Um pouco mais calmo, Albert caminha ao lado de Frosty durante a marcha da caravana. Ambos estão sem maquiagem agora. Frosty então conta a Albert um sonho que teve: sonhou que Alma dizia que ele estava muito triste e cansado. Por isso, ela faria com que ele reduzisse de tamanho, até que pudesse entrar em sua vagina e deitar dentro de sua barriga. Lá, Frosty poderia se sentir protegido e descansar como um bebê. E ele ia diminuindo de tamanho dentro da barriga de Alma, até que se tornasse uma pequena semente e depois desaparecesse. Albert escuta o sonho intrigado. Logo, Alma resmunga para Frosty e ordena que ele vá para dentro imediatamente. Ele acata de bom grado, apenas dizendo a Albert que nada pode fazer se só consegue dormir ao lado dela. E Albert põe-se a pensar sobre o significado desse sonho. E parece finalmente compreender que, às vezes, é necessário que se aceite a cota de humilhação que a vida nos reserva, para que assim possamos permanecer vivos e seguir em frente. Esse pensamento inspira Albert a perdoar Anne, com a qual caminha agora lado a lado, junto da caravana do circo. No seu caso, o sacrifício pessoal seria a única forma de interromper o círculo vicioso de humilhações sofridas e imputadas. As três mulheres do filme: Anne, Agda e Alma, são todas mais fortes do que seus homens, Albert e Frosty – muito embora Anne tenha fraquejado temporariamente diante de Hans. Assim, embora Noites de Circo represente de forma preponderante a perspectiva masculina, o filme termina com um sutil elogio ao empoderamento feminino, quando demonstra o ganho de maturidade dos homens quando passam a aceitar isso. A vaidade não pode ser mais importante do que a vida. E, para que a vida possa continuar e florescer, o espetáculo não pode parar.
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