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A Pintura e a Arquitetura no Cinema de Peter Greenaway: Uma Análise Visual e Epistemológica

Peter Greenaway, um dos diretores mais singulares do cinema contemporâneo, construiu uma obra que transcende as convenções narrativas, mergulhando em um universo onde a pintura e a arquitetura não são meros cenários, mas elementos intrínsecos e fundamentais da sua linguagem cinematográfica. Para Greenaway, o cinema é, antes de tudo, uma arte visual, e sua formação como pintor é inegavelmente o alicerce de sua estética fílmica, situando sua obra em uma tradição de reflexão sobre a representação e a percepção.


A influência da pintura é visível em cada quadro de seus filmes. Greenaway compõe suas cenas com a meticulosidade de um pintor renascentista ou barroco, utilizando a simetria, a profundidade de campo e a iluminação dramática para criar imagens que frequentemente remetem a obras de arte clássicas. Filmes como "The Draughtsman's Contract", de 1982, são um testamento direto a essa paixão, com sua narrativa centrada em um artista e a própria estrutura do filme ecoando os princípios da pintura do século XVII. A forma como ele enquadra seus personagens, muitas vezes em tableaux vivants, e a paleta de cores cuidadosamente escolhida em filmes como "O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante" de 1989, onde cada cômodo possui uma cor dominante, revelam uma obsessão pela composição visual e pelo simbolismo cromático. Ele mesmo afirmou que o cinema, para ele, deveria ser um "cinema de ideias", em oposição a um cinema de experiência vicária, o que evoca a distinção platônica entre o mundo das aparências e o das Formas, sugerindo que suas imagens buscam revelar verdades subjacentes, para além do mimetismo superficial.


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A Arquitetura como Personagem e Metáfora do Inconsciente


Além da pintura, a arquitetura desempenha um papel crucial na filmografia de Greenaway. Os espaços em seus filmes são muito mais do que fundos passivos; são personagens em si, com suas próprias histórias e significados. Em determinado filme, a casa é um labirinto de segredos e intrigas, com sua estrutura formal espelhando a complexidade das relações humanas, remetendo a uma psicogeografia do espaço, onde o ambiente reflete e molda a psique dos indivíduos. Em "A Barriga do Arquiteto", de 1987, o próprio corpo humano é comparado a uma estrutura arquitetônica em decadência, explorando a efemeridade da vida em contraste com a solidez aparente da construção. Essa correlação entre corpo e edifício pode ser lida sob uma ótica psicanalítica, onde a estrutura arquitetônica serve como uma projeção do ego e do inconsciente, com suas fundações, fachadas e interiores revelando as camadas ocultas da subjetividade. Greenaway demonstra uma fascinação por grades, listas e classificações, o que se reflete na organização quase matemática de seus cenários e na forma como os personagens se movem dentro deles. As edificações em seus filmes são frequentemente grandiosas, simétricas e imponentes, servindo como recipientes para dramas humanos intensos e muitas vezes grotescos, evocando a ordem e o caos, o racional e o irracional que permeiam a condição humana.


A Caligrafia, o Corpo e o Espaço em The Pillow Book: Uma Semiótica Corporal


A obra de Greenaway ganha uma dimensão ainda mais intrigante com a inclusão de The Pillow Book (1996), onde a caligrafia se une à pintura e à arquitetura para explorar a complexidade do corpo e da representação. Neste filme, a protagonista, Nagiko, expressa seus desejos e anseios escrevendo textos em corpos humanos. Essa prática eleva o corpo a uma superfície arquitetônica e pictórica, transformando-o em uma tela efêmera para a arte da escrita. Esta redefinição do corpo como um palimpsesto de significados remete à fenomenologia de Merleau-Ponty, onde o corpo não é apenas um objeto, mas o próprio lugar da experiência e da significação. A caligrafia, nesse contexto, torna-se uma linguagem somática, uma extensão da subjetividade que se inscreve no Outro. A própria estrutura narrativa do filme espelha a ideia de um livro de anotações (o "diário de travesseiro"), com capítulos distintos e uma organização quase formal, reminiscentes de listas e classificações, elementos tão caros a Greenaway e que podem ser vistos como uma tentativa de impor ordem a uma realidade caótica, uma necessidade epistemológica de categorização. A estética visual de The Pillow Book é uma fusão de tradições orientais e ocidentais, com a simetria e a composição meticulosa presentes em cenas que lembram xilogravuras japonesas e a rica paleta de cores explorada com a mesma intensidade de suas obras anteriores. A forma como Greenaway filma os corpos, com sua atenção aos detalhes da pele e aos contornos, os eleva a monumentos, ligando-os conceitualmente à solidez e à beleza da arquitetura, explorando a tensão entre o efêmero da carne e a aspiração à permanência da arte.


O Cinema Como Tela e Estrutura Viva: Questões de Semiótica e Percepção


A forma como Greenaway manipula a pintura e a arquitetura em seu cinema não é meramente decorativa. Ele as utiliza para construir metáforas, explorar temas filosóficos e questionar a própria natureza da representação. Ao emular a rigidez formal da pintura e a solidez da arquitetura, Greenaway desafia a noção tradicional de narrativa linear e de realismo no cinema, instigando uma reflexão sobre a semiótica do cinema, onde os signos visuais adquirem primazia sobre a progressão diegética. Seus filmes são experiências sensoriais e intelectuais, onde a imagem e o espaço são tão importantes quanto o diálogo ou o enredo. Ele subverte as expectativas do público, convidando-o a um olhar mais atento e contemplativo, quase como se estivesse diante de uma obra de arte em um museu, um processo que evoca a "distância estética" de Schiller, onde a contemplação da arte permite uma elevação acima das contingências da vida.


Em suma, a obra de Peter Greenaway é um testemunho eloquente da profunda interconexão entre as artes e uma meditação sobre a natureza da percepção e do conhecimento. Sua visão cinematográfica, enraizada na pintura e na arquitetura, oferece uma experiência única, onde a beleza estética se funde com a exploração de ideias complexas. Para ele, o cinema não é apenas uma forma de contar histórias, mas um meio para desafiar, provocar e redefinir o que a sétima arte pode ser, transformando a tela em uma tela e o set em uma estrutura viva, convidando o espectador a uma experiência catártica de imersão e questionamento. Seria o cinema de Greenaway, então, uma busca pela verdade através da beleza formal, ou um desafio à própria noção de verdade na era da imagem?


 
 
 

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