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Cenas de um Casamento, Ingmar Bergman

Cenas de uma transição para a televisão


Como o cinema de planos fechados e imagem quadrada solidificaram Bergman também na tela pequena


Em 1975, 24 cineastas de primeiro porte de todo o mundo, de Frank Capra a Federico Fellini escreveram uma carta à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para reclamar da “tecnicalidade” que impedia que Cenas de um Casamento (1973), o filme de Bergman recém-lançado nos Estados Unidos, fosse indicado ao Oscar. Uma outra carta foi escrita por atrizes célebres da época, como Jane Fonda, exigindo a indicação de Liv Ullmann. Não deu em nada: a “tecnicalidade” que impediu a nomeação da obra de Ingmar Bergman era de que, bom, não se tratava de um filme, e sim de uma minissérie. O que os Estados Unidos viram, e depois todo o mundo, foi uma versão condensada de uma série de seis episódios, exibida no ano anterior.



Isso, no entanto, não impediu que essa versão condensada fosse vista como um filme, apesar das evidentes amostras da origem televisiva do material. A minissérie foi filmada em 16mm, porque a televisão não exigia grande resolução, e depois teve de passar por um transfer para 35mm, no qual foram cortados o topo e a parte de baixo da imagem. O fotógrafo Sven Nykvist era terminantemente contra a versão para cinema, porque seu trabalho pareceria porco, feito todo em close-ups, e com as legendas sobre a boca dos atores. A vaidade de Nykvist, que acabava de ganhar um Oscar por Gritos e Sussurros (1972), cedeu diante dos prospectos comerciais. Depois de ser um hit na televisão sueca, Cenas de um Casamento foi um sucesso absoluto de bilheteria, mesmo para um filme de arte sobre a decomposição de um matrimônio com quase três horas (na versão reduzida), e legendado.


A maleabilidade formal tanto de Cenas de um Casamento quanto de outras obras da sua carreira reflete a flexibilidade do próprio Bergman, que era cineasta, mas também dramaturgo e diretor de teatro. A televisão foi um passo a mais, um desdobramento de todas essas carreiras, com a vantagem de proporcionar uma experiência muitas vezes individual de fruição, algo que casa bem com os seus interesses artísticos, pessoais, editoriais.


Certa vez, numa entrevista, Billy Wilder disse que fazia filmes para arrebatar multidões: “Há filmes que funcionam muito bem com dez, doze pessoas. Eu faço filmes para a sala cheia”. Embora algum dos filmes de Bergman possam ter um efeito coletivo de catarse, o seu cinema exige uma introspecção que, não raro, faz com que o impacto do seu pensamento e forma seja maior na solidão de uma sala vazia, às vezes a da própria casa do espectador. Não obstante tenha obras de grande vigor visual, como Gritos e Sussurros e Persona (1966), a televisão acolhe bem boa parte da sua filmografia.


Algumas das imagens mais icônicas de Bergman são rostos, muitas vezes rostos a olhar diretamente para a câmera, como o de Harriet Andersson em Mônica e o Desejo (1953), ou a fusão das faces de Bibi Andersson e Liv Ullmann em Persona. Sem querer simplificar ou tornar menos cinematográfica a arte do close-up, o fato é de que um rosto registra melhor na tela pequena do que um espetáculo exuberante, como o de um Fellini – para ficar em outro exemplo da cinefilia 101.


Conjuga-se a essa predileção pelo primeiríssimo plano a escolha de Bergman (e do fotógrafo Sven Nykvist) da janela quadrada de 1:1.37, a mesma da televisão, ou a janela europeia 1:1.66, a que sofre menos danos ao ser cortada, mesmo em sua obra mais suntuosa, Fanny e Alexander (1983). O único filme que fez em 1:1.85, a razão americana, foi A Hora do Amor (1971), feito em inglês, com dinheiro da ABC Motion Pictures, estúdio do canal de tv. O Cinemascope (1:1.2.35), então, sempre esteve totalmente fora de questão.

Todas essas observações técnicas servem para ilustrar como, na metade final da sua carreira, Bergman foi cada vez mais diluindo as fronteiras entre cinema e tv, trabalhando em projetos que tiveram várias versões, ou mesmo uma única versão exibida em diferentes formatos.


O primeiro contato de Bergman com a televisão, veio em 1957, mesmo ano de seus clássicos Morangos Silvestres e O Sétimo Selo, mas, pelo que se pode encontrar revirando a internet, o cineasta não estava ali presente, e sim o dramaturgo e encenador. Bergman fez uma série de teleteatros, basicamente em estúdio, com uma câmera para o plano aberto e outra para closes. A experiência de acompanhar as imagens de Herr Sleeman kommer, disponível no Youtube apenas com legendas em russo, é bem próxima à de acompanhar uma sitcom, inclusive com o sofá do cenário virado para a câmera, convenção mais americana impossível.


Embora nem todo o seu trabalho para a televisão sueca esteja disponível, é seguro dizer que o primeiro telefilme do diretor, de fato, é O Rito, de 1967. Apesar de claustrofóbico e evidentemente feito num estilo ainda mais à queima-roupa dos atores que o habitual, O Rito não causa o contraste em relação aos filmes-filmes feitos pelo diretor, como acontece com os teleteatros que havia realizado. O Rito tanto passa como filme, que foi lançado nas salas do mundo todo após a estreia na televisão sueca, em março de 1969.

Entre O Rito e Cenas de um Casamento, fez três filmes, entre eles o ultracinematográfico Gritos e Sussurros, talvez o mais visualmente ambicioso filme da sua carreira, mas depois da minissérie, dos seus seis projetos até a “aposentadoria”, quatro foram feitos com a televisão em mente, seja de forma prioritária, seja como uma plataforma para lançamento de uma versão alternativa de um projeto de cinema. A verdade é que os modelos de lançamento foram todos peculiares, e desafiam os modelos modernos de comercialização cinematográfica.


Após Cenas de Um Casamento, Bergman dirigiu uma versão da ópera A Flauta Mágica, de Mozart, para televisão, mas desta vez já com o planejamento devido com o fotógrafo Sven Nykvist, que filmou em 16mm já pensando na transposição para 35mm e nos cortes de janela, da tela quadrada para 1:1.66. O telefilme é o primeiro da história em estéreo.

Face a Face (1976), seu próximo projeto, foi pensado como uma minissérie em quatro capítulos de três horas, mas a versão cinematográfica, de duas horas, foi devidamente lançada nos cinemas antes da exibição televisiva, garantindo desta vez a indicação ao Oscar a Liv Ullmann. O Ovo da Serpente (1977) e Sonata de Outono (1978) foram as exceções do período, concebidos e comercializados como filmes-filmes. Em Da Vida das Marionetes(1980), retorna ao padrão anterior. O projeto, um riff de Cenas de um Casamento, reutiliza as personagens Peter e Katarina da minissérie, mas agora com atores alemães. Na época, Bergman estava exilado em Munique devido a problemas com impostos. Ao contrário de Face a Face, Da Vida das Marionetes foi exibido primeiro na televisão, e em seguida passou nos cinemas, algo impensável até hoje nos padrões da indústria.

Curiosamente, Da Vida das Marionetes, apesar de mal sucedido, é um dos seus projetos mais exigentes. Mesmo na Alemanha, temas como necrofilia filmados em preto e branco radical não parecem ser a melhor pedida para um programa do horário nobre. Não há qualquer concessão ao formato televisivo. Apesar de ser considerado um telefilme, tem a brutalidade cinematográfica das suas experiências mais difíceis, como O Silêncio (1963).

Por fim, Fanny e Alexander fica num limiar. É um projeto originalmente televisivo, em seis capítulos, mas a escala é totalmente cinematográfica, com filme 35mm, janela 1:1.66 e muito dinheiro – foi o filme mais caro produzido na Suécia até aquele momento. O projeto foi editado e concluído como uma minissérie de 312 minutos, e só depois vieram os cortes para o cinema, que deixaram a metragem em 188 minutos. A versão cinematográfica, no entanto, foi lançada em dezembro de 1982, enquanto a versão de tv só foi exibida em setembro do ano seguinte.Assim como em Da Vida das Marionetes, Fanny e Alexander é filme-filme, e o é o último dos projetos de Bergman a ter esse registro. É por isso que, apesar de ter continuado filmando para a televisão, Bergman definiu Fanny e Alexander como o seu último filme. O cineasta acabou ali.


Na verdade, esse ocaso do cineasta e o florescer do diretor de televisão coexistiram desde Cenas de um Casamento, e não indicam necessariamente um declínio artístico, já que Bergman era um consumidor ávido de produtos televisivos, hábito que ele creditava ao isolamento na Ilha de Faro.


Pode-se pensar em declínio apenas pelo fato de que, ao contrário do que ocorreu com a carreira do Bergman cineasta, que começou neorrealista e cresceu assustadoramente até a produção de obras-primas como Persona, o Bergman da tv – não dos teleteatros, e sim dos telefilmes e minisséries – alcançou o topo dos seus poderes logo no início da sua trajetória, e nunca voltou a alcançar o mesmo patamar.


Cenas de um Casamento foi um projeto bem sucedido não apenas comercialmente, mas pode ser considerado um apogeu do Bergman artista, em termos gerais, ao menos daquele que passa a existir após O Silêncio, filme divisor de águas da sua carreira. O próprio diretor dizia que aquele filme marca o fim das suas preocupações existenciais com a ideia de Deus, a força-motriz por trás da sua filmografia até aquele momento.


Depois de O Silêncio, Bergman voltaria sua lente para a relação dos homens entre si, e não dos homens com uma entidade sobrenatural externa a eles. Os amores, a família, a política, destronam então o silêncio divino como o centro de sua obra. Apesar dessa mudança de rumo, o fato é de que o tom pouco mudou. Mesmo no nível humano, Bergman continuou a filmar com toda a gravidade, pondo sobre as costas de suas personagens todo o peso do mundo.


Talvez por conceber Cenas de um Casamento como um projeto puro-sangue de televisão, Bergman dá-se ao direito de ser o mais mundano possível, de uma forma raramente encontrada na sua obra. Há um senso de banalidade presente em todos os capítulos: não é todo dia que um close-up na Liv Ullmann, geralmente um grande evento, é usado para discutir o encanamento de uma casa de campo, ou uma nova dieta.


A degradação de uma união ao longo de duas décadas é ilustrada em diálogos os mais francos e pesados, mas, ao contrário do que acontece nos Bergmans habituais, as preocupações expressas nesses diálogos estão ao alcance de qualquer espectador; não são apenas ruminações intelectuais, e sim material do cotidiano barraco de melodrama. Não à toa, ao refazer esse projeto sentimentalmente com seus Maridos e Esposas (1992), Woody Allen colocou na boca de uma das suas personagens: “A vida não imita a arte; imita televisão ruim”.


Essa ideia do Bergman pro homem comum, aquela em que casais saem no tapa ou são obrigados a tolerar as indiscrições de amigos bêbados, no entanto, não cai no dramalhão porque o diretor pode ter deixado de lado a gravidade, mas não a sua cortante falta de sentimentalismo. Erland Josephsson como Johan e Liv Ullmann como Marianne não estão na tela a vomitar a alma apenas para ganhar a simpatia do telespectador e arrancar-lhe lágrimas. Eles estão decompondo as suas personagens, mas não em busca de um olhar cúmplice ou afetivo; eles são o que são. O olhar de Bergman pode ser arrasados frente a Deus, mas não é menos violento frente aos humanos.


Apesar de suas quase seis horas serem difíceis de encarar no atual formato de binge-watching incentivado pela Netflix – há um cansaço evidente na troca de farpas, especialmente porque o auge da minissérie é o primeiro episódio -, Cenas de um Casamento é provavelmente o projeto mais acessível de Bergman. Este não é um mérito em si num filme, mas é, com certeza, quando se pensa em televisão. Pouca gente conseguiu dizer o que se diz aqui para um público tão grande, com tanta frontalidade.

Não deixa de ser uma pena, no entanto, que Bergman tenha decidido voltar a esse universo em projetos que não chegam perto do original, como o já citado Da Vida das Marionetes, e o seu último projeto de todos, o telefilme Saraband, de 2003, que traz de volta Johan e Marianne, mas é menos uma continuação que um riffdo original. Há diversas alterações no universo: as datas não batem; os nomes das filhas são diferentes, e a personagem de Henrik, filho de Johan, não existia. Este não é um problema, mas Bergman retoma as personagens antigas apenas para deixá-las de lado em troca de personagens secundários que pouco têm a contribuir com o projeto, além de ilustrar uma sordidez (oh, incesto!) que já pareceria velha nos anos 70. Não à toa, Saraband nem de longe fez o mesmo sucesso que o original.Numa época em que se celebra a era de ouro da televisão, é bom lembrar que experiências radicais nos anos 70, como esse Cenas de um Casamento, ajudam a relativizar a qualidade do que se aclama atualmente. Será que chegam, de fato perto de Bergman, ou dos projetos de Fassbinder, ou de Kieslowski nos anos 80? Difícil.

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