Gritos e Sussurros, Ingmar Bergman
- Marcello Muller
- 1 de abr.
- 6 min de leitura
As mortas insepultas
Na sua autobiografia, Imagens, o cineasta Ingmar Bergman disse que a ideia de Gritos e Sussurros (1972) lhe veio num sonho:
“A primeira cena surgia em minha mente o tempo todo: um quarto com papel de parede vermelho e mulheres vestidas de branco. Acontece que certas imagens voltam teimosamente a meu cérebro sem que eu perceba a intenção delas. (…) Quatro mulheres vestidas de branco, num quarto com paredes vermelhas. A cena perseguiu-me um ano inteiro. Não sabia evidentemente como se chamariam as mulheres, nem por que se moviam numa luz difusa, de madrugada, num quarto de paredes vermelhas. Repetidas vezes eu rechaçava esta visão, recusando-me a usá-la como ponto de partida para um filme ou para o que quer que fosse. Mas ela foi teimosa e, contra minha vontade, identifiquei-a: trata-se de três mulheres que esperam o falecimento da quarta. E velam por turnos.”

Esse caráter onírico, presente na gênese do longa-metragem, se percebe na maneira como o sueco entrelaça as experiências de quatro mulheres diante da iminência da morte de uma delas. Harriet Andersson, atriz que frequentemente corporificou jovens vívidas, donas de ímpetos libertários, sendo, na principal delas, a protagonista de Monika e o Desejo (1953), desta vez interpreta Agnes, a moribunda prestes a sucumbir às terríveis dores decorrentes da doença terminal. Há uma vigília familiar montada para ampará-la. Suas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann), se revezam, eventualmente chegando a adormecer na antessala de seus aposentos funestos, de atmosfera carregada. Porém, é a empregada, Anna (Kari Sylwan), quem genuinamente lhe demonstra carinho e compaixão. Visualmente, sobressai o vermelho encarnado das paredes e de alguns objetos cenográficos, como as pesadas cortinas e o forro dos móveis. O rubro, tanto sintoma das paixões intensas e, por conseguinte, da pulsação vital, quanto do horror do sangue, é marcante, essencial à intensidade da experiência de assistir a Gritos e Sussurros, cujo trajeto é angustiante, pois carregado de ditos e não ditos.
Gritos e Sussurros é fruto de uma fricção minuciosa entre a realidade e a projeção de estilhaços inconscientes. As instâncias se interpenetram. Enquanto acompanhamos a senda de sofrimento aparentemente infindável de Agnes, que tenta resistir à finitude que se achega implacavelmente, Bergman abre o foco, a fim de que percebamos as irmãs de comportamentos quase protocolares. Nenhum outro realizador utilizou o close-up como o sueco. Aqui, o recurso é elevado ao nível do sublime. Assim que a câmera se aproxima dos rostos, capturando pormenores das fisionomias que insistem em acobertar sentimentos e amarguras efervescentes, o filme permite um mergulho profundo em cada pessoa dessa vigília excruciante. Agnes é como o cordeiro caro às doutrinas cristãs, que supostamente purificará os pecados dos demais ao morrer. Bergman não prevê salvações, tampouco observa os personagens masculinos como pontos fora dessa curva de danação feminina. Os homens do longa são figuras totalmente inúteis, quando muito presentes para ampliar a confusão cotidiana e existencial que fragiliza as mulheres, as deformando ao ponto da insensibilidade.
Maria se desvela primeiro, com sua beleza esfuziante, cabelos vermelhos e olhos azuis devidamente valorizados pela fotografia primorosa de Sven Nykvist. O flerte com o médico da família, interpretado por Erland Josephson, é uma forma de sentir-se viva. Aliás, o único momento em que um homem vai além da distância e da apatia é quando esse amante analisa a personalidade de Maria, valendo-se das linhas que transformaram seu rosto no decurso dos anos. Ele deflagra sorrisos cínicos, dissimulações e outras máscaras outrora inexistentes, num diálogo cortante, capturado por Bergman frontalmente. O semblante malicioso da mulher, gradativamente esmaece pelas constatações de quem ela intenta possuir sexualmente. Uma passagem inesquecível, que condensa o ímpeto ferino de um cineasta não preocupado com malabarismos estéticos. Para Bergman, a beleza nem sempre significa o triunfo do bem, podendo fazer-se presente como uma fina camada a encobrir justo a feiura do mundo. A mais infantil das irmãs, Maria é desesperada por atenção, espécie de herdeira direta da matriarca que perambulava pela propriedade absorta em si. Não à toa, Ullmann também a encarna.
Logo depois, é a vez de Karin se revelar, o que acontece após o passamento de Agnes. Até então, ela é vista como um fantasma autoritário que assume as rédeas da família, cuidando constantemente de pormenores relativos aos bens. Ela é refratária ao carinho, enojada sempre que alguém lhe toca. Todavia, a exacerbação dessa frieza cobra um preço altíssimo. Suas emoções sofrem para romper a máscara praticamente mortuária que a impede de reluzir. A relação com o marido é construída sobre mentiras. Isso a exaspera ao ponto de, numa medida extrema para escapar ao marasmo, cortar sua vagina, deleitando-se com o sangue que escorre do seu sexo, especialmente diante da estupefação do marido. Ao menos assim, em virtude de uma ação brutal, arranca reação do homem que, no mais das vezes, a observa burocraticamente como se fosse mobília. Gritos e Sussurros trata o carinho como uma exceção bem-vinda, a luz que ocasionalmente corta a crueldade dominante. Mas, como de costume na obra de Bergman, sequer as atitudes vis não são passíveis de julgamentos, tratadas como traços de uma humanidade que perambula desorientada pela terra sem Deus.
O tique-taque do relógio, componente sonoro quase onipresente em Gritos e Sussurros pontua a contagem regressiva. A cada minuto, a vida se esvai em direção à morte que lhe significa. Agnes está em estado terminal. Suas irmãs, embotadas por contratempos psicológicos e existenciais, permanecem em pé, interagindo como se guiadas por uma formalidade social, porém igualmente agindo como mortas insepultas. A nudez é anódina, as interações sociais são completamente esquemáticas e as tentativas artificiais de aproximação, sobretudo de Maria e Karin, mais que fraternas, são como pedidos egoístas de socorro. Todavia, a irmã mais velha tampouco está disposta a atendê-los. No fundo, a primogênita pouco se importa, já que a própria não tem forças para sentir e/ou apiedar-se. A volta de Agnes do reino dos mortos expõe a violência desse individualismo que deriva da completa incapacidade dos seres. Ela clama por conforto, sentindo-se sozinha no além, mas recebe a indiferença de Karin e a aflição de Maria. Esta chega a esconder sua covardia atrás dos nobres deveres maternos, até então mencionados com frieza, o que denota a profunda ausência de carinho que será transmitida.
Anna, a serviçal, é quem, a priori, destoa nesse ambiente opressor em que o egoísmo dá as cartas por falta de oponentes à altura. Ela oferece seus braços à mulher atemorizada, confortando-a, tentando atenuar o seu sofrimento. Esse comportamento materno, todavia, diz respeito à perda da filha pequena. Anna acaba transferindo à patroa o afeto e a atenção que reservara à criança. Ao contrário de Karin e Maria, desprovidas de amor, Anna o tem excedente, precisando transborda-lo, direcionando-o à criatura fragilizada e, portanto, carente. Logo que o enterro é consumado, ela se torna vítima do desdém dos remanescentes, tratada como uma peça do cenário que pode ser descartada, porque não tem utilidade. A caracterização de Kari Sylwan é expressiva, no sentido de manifestar essa discrepância. Sua aparência menos adornada, mais crua, deixa exposta a verdade que a maquiagem ajuda a esconder nas irmãs sobreviventes. Gritos e Sussurros é uma obra-prima absoluta por conjugar uma série de elementos com primazia. Da cenografia que confere esse limiar entre a realidade e o sonho/pesadelo, passando pelos figurinos carregados e a direção de arte, chegando ao trabalho luminoso do elenco, tudo converge para denotar os vários desesperos prevalentes. Poucas vezes o cinema tornou praticamente palpável a presença da morte como em Gritos e Sussurros. Por meio de uma encenação tecnicamente precisa, e uma sensibilidade ímpar para tratar dos infortúnios humanos, Ingmar Bergman realiza, talvez, sua maior obra-prima. Difícil cravar isso, pois o sueco nos proporcionou, ainda, filmes como Persona (1966), Fanny e Alexander (1982), Cenas de um Casamento (1973), Noites de Circo (1953), O Sétimo Selo (1956), Morangos Silvestres (1957), Sonata de Outono (1978), entre tantas outros. O silêncio de Deus, um dos temas preferidos do cineasta, se percebe na jornada dolorosa das quatro mulheres. Há vários signos religiosos, como crucifixos e imagens sacras. Agnes repousa no colo de Anna como Jesus no de Maria na Pietà, escultura de Michelangelo. Mas, é na prece emocionada do padre Isak (Anders Ek), numa das cenas mais emotivas do longa, que a possível ligação entre o terreno e o transcendente é adensada. A súplica do sacerdote à recém-falecida é por uma interseção junto a Deus, para que ele conceda a sua celebrada infinita misericórdia aos sobreviventes, tornando suas existências menos miseráveis. A oração vai perdendo o caráter protocolar, adquirindo contornos de clamor desalentado, transformando em sublime o que seria uma participação minúscula. A cena final, com todas de branco passeando pelos campos, sem dores e discussões, é como uma visão do paraíso para Agnes, evento supostamente banal, mas que a ela representa a felicidade em seu estado mais pleno e puro.
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