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Luz de Inverno, Ingmar Bergman

A partir de meados da década de 1950, Ingmar Bergman passou a enfatizar em seus filmes os questionamentos metafísicos relacionados à fé, à espiritualidade e à crença em uma entidade mística governando o mundo. São dessa época – e têm como mote o confronto humano com a ausência do divino – títulos como as obras-primas O Sétimo Selo (1957) e A Fonte da Donzela (1959), fábulas medievais que formam um díptico sobre o espanto diante da morte e da finitude, e O Rosto (1958), curiosa alegoria que coloca em embate arte, ciência e sobrenatural. No começo dos anos 1960, o cineasta rodou três filmes sombrios batizados de “trilogia do silêncio” ou “trilogia da fé": Através de um Espelho (1961), Luz de Inverno (1962) e O Silêncio (1963). Bergman referia-se a esse trio como “filmes de câmara” – obras ambientadas em interiores e magnificamente fotografadas em preto e branco por Sven Nykvist.



Uma das obsessões da filmografia do diretor sueco, a ausência de Deus é o tema de Luz de Inverno: o excelente ator Gunnar Björnstrand interpreta um pastor de uma localidade no interior da Suécia, atormentado pela perda da fé e pela incapacidade de confortar um pescador (Max von Sydow) amedrontado com a possibilidade de uma guerra atômica. Nem o romance com uma professora ateia (Ingrid Thulin) esquenta o coração enregelado do sacerdote. A história é ambientada boa parte do tempo dentro da austera igrejinha da paróquia de Tomas Ericsson.


Bergman buscou inspiração em um dos mais secos dramas do mestre francês Robert Bresson: Diário de um Pároco de Aldeia (1951), adaptação do romance homônimo do escritor Georges Bernanos. De fato, Luz de Inverno emula o ritmo ralentado e reflexivo da ação típica do cinema do francês e a atuação desapaixonada dos "modelos" bressonianos – especialmente na primeira metade do filme. A figura do reverendo é uma recorrência na filmografia de Bergman – o pai do realizador era um severo clérigo protestante, evocado em títulos como o autobiográfico Fanny & Alexander (1982).


Luz de Inverno se passa em apenas um dia, começando e terminando em missas frias e monótonas, assistidas por um quorum ínfimo de pessoas que dificilmente podem ser chamadas de fiéis. A primeira e longa cerimônia, que serve de abertura do filme e apresentação dos personagens, é particularmente ilustrativa da desolação existencial daquela congregação. Captados pela lente do diretor de fotografia Nykvist em grandes closes fechados, os rostos da meia dúzia de presentes antecipam-se aos diálogos na definição dos diferentes espíritos reunidos: há ali descrença, apatia, farisaísmo, angústia, desespero, ingenuidade – apenas o semblante comovido de uma única senhora expressa algo parecido com fé.


Quem oficia essa deprimente comunhão é um pastor ainda mais incrédulo do que seu rebanho. Tomas celebra a missa com a indiferença de um autômato, afligindo-se no entanto nas sequências seguintes com a própria insensibilidade e incompetência para demonstrar empatia aos pedidos de compaixão de sua devotada amante Märta e, em particular, do perturbado Jonas, com seu temor de que a China jogue uma bomba atômica. ("Luz de Inverno" foi lançado em 1962, ano da crise dos mísseis em Cuba e auge da Guerra Fria.) Tomas divide-se nessa jornada em que seu caráter é posto à prova: por um lado, apega-se ao profundo e persistente amor pela esposa morta como indício de que sua humanidade ainda não está de todo comprometida; por outro, compraz-se quase sadicamente com sua misantropia e com o agressivo desprezo que acaba por dirigir a Märta. Dilacerado por dúvidas e contradições, o reverendo ecoa as palavras de Cristo na cruz: "Deus, por que me abandonastes?". A falta de resposta leva-o à amarga conclusão: "Deus está silencioso". No final desse dia – definido em tom bíblico por Märta como "mais um domingo no vale de lágrimas" –, antes de dar início a uma missa sem sequer um crente na igreja, Tomas escuta do homem que o ajuda em suas tarefas eclesiais um comentário que o leva a identificar-se ainda mais com Jesus: para além dos suplícios físicos sofridos antes e durante a crucificação, o que causara maior dor ao Filho do Senhor teria sido a deserção dos discípulos na noite de sua prisão no Getsêmani.


Luz de Inverno está repleto de referências religiosas, algumas delas evocando a própria obra de Bergman – caso de uma imagem na parede que mostra a morte segurando um tabuleiro de xadrez e do crucifixo com um Cristo de expressão agonizante pendurado atrás da mesa de Tomas na sacristia, que remetem a O Sétimo Selo. Märta, por sua vez, encarna o ideal do sacrifício piedoso cristão com seu amor incondicional pelo ingrato pastor, além de lembrar as chagas crísticas na cena em que mostra as feridas de origem misteriosa nas mãos. O próprio tempo diegético de Luz de Inverno responde a uma alusão sacra: a ação se passa do meio-dia às três da tarde – mesmo período em que Jesus permaneceu padecendo na cruz.


Os nomes dos personagens também relacionam-se com a cultura cristã e instigam interessantes interpretações. Tomas é o mais eloquente deles: originalmente em aramaico quer dizer "gêmeo" – reforçando as similitudes entre o protagonista e o Messias, sugeridas em palavras e imagens no filme. O nome também contempla a ambivalência do religioso: Tomé – variante de Tomás – foi o apóstolo que duvidou da ressurreição de Cristo; São Tomás de Aquino, por seu turno, foi um dos mais venerandos doutores da Igreja. Já Märta etimologicamente é "protetora do lar" e remete à irmã de Lázaro, que volta à vida por intermédio de Jesus – no longa, ela aparece arrancando as ataduras que envolvem suas mãos como se fossem as de um leproso. Por fim, o pescador Jonas imediatamente evoca o profeta engolido por um peixe gigante como castigo por ter desobedecido a vontade de Deus – além disso, esse nome significa "pomba", símbolo que representa o Espírito Santo.

Não há espaço para redenção em Luz de Inverno. Depois de uma visita à mulher de Jonas a fim de comunicar-lhe desajeitadamente o suicídio do marido, Tomas embarca no carro ao lado de Märta. Ambos seguem viagem silentes até que param à beira de uma linha de trem. O homem então começa a contar: "Era o sonho dos meus pais que eu me tornasse pastor..." – mas Bergman não nos permite escutar o restante da fala, sobrepondo à voz o som do comboio que passa.


Um dos filmes prediletos do cineasta russo Andrei Tarkovski, Luz de Inverno é uma bela e cruel elegia. Ingmar Bergman desnuda impiedosamente na tela nosso desamparo sob a iluminação gélida do ceticismo. Curiosa e paradoxalmente, isso é tão perturbador quanto reconfortante. Um sentimento complexo que só o cineasta da alma era capaz de provocar.

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