Morangos Silvestres, Ingmar Bergman
- Fabio Camarneiro
- 1 de abr.
- 4 min de leitura
Após a sequência que apresenta Isak Borg e os créditos de abertura de Morangos Silvestres (1957), temos uma sequência onírica. Em seu sonho, Borg está sozinho em uma rua estranhamente deserta, os ruídos um pouco mais altos do que o esperado, uma claridade estourada, duros contrastes de luz, relógios sem ponteiros, uma pessoa sem rosto... Um carro fúnebre puxado por cavalos sofre um acidente e faz o caixão tombar. Estupefato e curioso como só as crianças e os velhos podem ser, Borg se aproxima do caixão com a tampa entreaberta, de onde pende a mão enrugada que ganha vida e o leva a descobrir que o defunto é ele mesmo.

Tal sequência é muitas vezes lembrada quando, na aproximação entre cinema e psicanálise, se valoriza uma relação semiológica, em que cada signo fílmico é interpretado como símbolo de algo além: uma abordagem em que “algo” sempre quer dizer “outra coisa”. Nada mais distante do cinema de Bergman, que – como todo grande cineasta – entende que a materialidade das coisas, suas formas, contornos e superfícies, podem tudo comportar.
A relação entre cinema e psicanálise não pode pensar aquele como uma espécie de língua morta, uma pedra de Rosetta que guarda significados ocultos. Não há nada “além”, apenas o encontro da memória (uma subjetividade singular) com o aqui e o agora. Não são os signos em si, mas o corte – com suas associações e suas múltiplas potencialidades – que pode operar uma reestruturação brusca do discurso fílmico e, quiçá, tecer comentários que podem servir tanto ao pensamento cinematográfico quanto aos discursos acerca do inconsciente. Na sequência de abertura, quando Borg se apresenta, há um momento assim, bastante discreto, apesar de revelador: o velho médico fala de sua rotina, de sua relação com o trabalho, cita seu filho, sua mãe, sua falecida esposa, e então sua governanta aparece na porta. A esposa, figura feminina que aparece em um porta-retratos (uma moldura) e que o corte substitui por outra, a governanta, que surge atrás dos umbrais de uma porta (outra moldura). A estrutura do filme acompanhará esse movimento, em que tantas imagens se sucedem à outras, confundindo-se mutuamente.
Em Morangos Silvestres, passado e presente, trauma e esquecimento, vida e morte se tocam e se interpenetram. Assim, a viagem de carro é também um retorno às memórias e ao passado do velho Borg. Sabemos que, em sua juventude, ele e seu irmão disputaram o amor da prima Sara – que acabou se casando com o último. Essa paixão juvenil e a jovem caronista que acompanhará Borg em sua viagem são interpretadas pela mesma Bibi Andersson. Com ela, outros dois caronistas formam um novo triângulo amoroso, mas em tom ligeiro. No fundo, os vários paralelismos de Morangos Silvestres apresentam escolhas: Sara deve se casar com um ou com outro (ou com nenhum deles)? Marianne deve escolher o casamento ou a maternidade? Evald repetirá os erros de seu pai e negligenciará seus sentimentos até ser tarde demais?
Bergman parece saber que a responsabilidade inerente a essas escolhas e a culpa de não ter escolhido outra coisa são as duas faces de uma mesma moeda. Assim, na fantasia de Borg, um júri o condena de maneira peremptória e, na cerimônia em sua homenagem, lhe é conferido o título de “doutor jubilaris”. Porém, é como se ambas as cerimônias (frias, distanciadas) fossem uma mesma coisa.
No papel central, está Victor Sjöström, um dos maiores nomes do cinema silencioso sueco e que, ainda nos anos 1920, realizou nos EUA alguns filmes com Lilian Gish, dos quais The Wind é certamente o mais memorável. (Na ocasião, seu nome foi “adaptado” para Victor Seastrom.) Se muito da obra de Bergman deve-se a seus autores prediletos no teatro (como Strindberg), Morangos Silvestres é também tributário de A Carruagem Fantasma (1921), o clássico que Sjöström dirige em 1925. Em ambos os filmes, existe a presença da morte; em ambos, uma espécie de volta ao passado, de rememoração marcada pela culpa. Mas se o filme de Sjöström é uma elegia à expiação, Morangos Silvestres é o equilíbrio entre duas facetas de Bergman: o cineasta atormentado de O Sétimo Selo (1957), Persona (1966), A Hora do Lobo (1968) ou Gritos e Sussurros (1972), com o encenador de obras mais ligeiras como Sorrisos de uma Noite de Amor (1955). Não há expiação, mas o perdão. Não há transcendência, mas o riso.
O teatro foi o maior interesse de Bergman durante toda a sua vida, e Morangos Silvestres parece dizer a seu público que todo o mundo é um teatro, ao qual nos entregamos de maneira apaixonada e atabalhoada, em que demoramos a descobrir nossos papéis, em que esquecemos nossas falas mas que podemos, às vezes, relembrar e reviver (e, assim, podemos, mesmo que na memória – este outro palco – reescrever nossa existência). Podemos também, ao prestar atenção aos dramas que nos cercam (e também aos do teatro, da literatura ou do cinema), tentar não repetir os erros de outros. Para Bergman, a arte é também uma pedagogia da vida, em que podemos viver outras vidas. Depois de Morangos Silvestres, ele retornaria a esses mesmos temas em Fanny e Alexander (1983), não mais vendo o passado a partir de um velho, mas de crianças.
Bergman parece nos lembrar que a repetição é a base tanto do trauma como da comédia. Não podemos escapar de nós mesmos nessa espécie de teatro do mundo, e essa tragédia da existência, em muitos sentidos terrível, é também risível. Ao final de Morangos Silvestres, Borg se prepara para dormir. Acaba por rememorar mais uma vez o passado e, em uma paisagem idílica, reencontra seus pais e uma sensação de plenitude. Em sua expressão, podemos adivinhar que, caso volte a sonhar com a morte, talvez Borg possa rir dela. Ou talvez desafiá-la em um jogo de xadrez – mas aí seria outro filme.
A obra de Bergman sobreviverá ao tempo, entre tantos motivos, por mostrar ao mesmo tempo a leveza e a tragédia da experiência humana. Em tempos em que as dicotomias parecem dar o tom, é sempre bom poder voltar a Morangos Silvestres e relembrar como passado e presente, trauma e esquecimento, vida e morte não se opõem como gostaríamos de pensar.
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