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No Limiar da Vida, Ingmar Bergman

No limiar da vida faz 60 anos – os muitos confinamentos do corpo feminino na sociedade patriarcal


Uma porta dupla de vidro martelado nos separa do interior da ala de internação e isolamento de gestantes e mulheres com complicações relacionadas à gravidez. Este é o primeiro plano de No Limiar da Vida (1958), ao fim do qual somos conduzidos para o interior junto com Cecilia Ellius (Ingrid Thulin), que chega ao local numa maca, ao lado do marido, após sofrer um sangramento que coloca em risco sua gestação de apenas dois meses. Uma vez recolhida a esse espaço apartado do mundo, no qual nem mesmo o esposo pode lhe acompanhar, Cecilia dividirá um quarto, angústias e expectativas com duas outras mulheres, em jornadas muito diversas, mas que se entrecruzam nesse ambiente exíguo e intimidador, lançando luz a diferentes facetas da experiência da mulher com a maternidade, o casamento e as pressões sociais na sociedade sueca da época – uma das mais avançadas do mundo nesse quesito, certamente, mas ainda assim extremamente machista e patriarcal nos anos 1950.



Perdido entre obras-primas inquestionáveis da brilhantíssima carreira de Ingmar Bergman – O Sétimo Selo e Morangos Silvestres são ambos de 1957 e O Rosto foi lançado nove meses depois – este filme de 1958 acabou esquecido e sub-estudado, apesar de ter arrematado três prêmios em Cannes naquele ano. Uma revisão, no entanto, evidencia de maneira inequívoca a atualidade do tema seis décadas depois, assim como a coragem da abordagem, que claramente denuncia a situação de opressão vivida pelas mulheres nesse contexto.


Diferentemente dos outros títulos citados, aqui o roteiro não é assinado pelo diretor, mas por uma mulher, Ulla Isaksson, com quem o realizador colaboraria também no impressionante A Fonte da Donzela, de 1960 (não por acaso um longa que trata da questão do estupro de forma bastante incisiva) e em Os Abençoados, filme para a televisão de 1986. Isaksson foi também romancista e permaneceu comprometida com debater questões relacionadas à condição feminina – seu primeiro roteiro, Kvinnohuset (em inglês Caged Women, dirigido por Hampe Faustman em 1953, tinha por cenário um prédio de Estocolmo habitado apenas por mulheres solteiras e se baseara num romance seu e num prédio sueco real. Para No Limiar da Vida, primeira parceria com Bergman, ela adaptou dois contos de sua autoria, seguindo algumas sugestões do diretor, inclusive a adição de uma personagem. Essa estreita colaboração entre os dois é muitas vezes ignorada nas pesquisas bergmanianas, e o esquecimento da roteirista é outro exemplo de apagamento das mulheres fantásticas que ajudaram a construir o cinema. Isaksson escreve de maneira bastante pungente sobre a condição da mulher, ao mesmo tempo em que entrega ao realizador um material extraordinariamente original, que ele dirige com grande sensibilidade, claramente pontuando a perversidade da situação daquelas mulheres. O título, no original Nära livet, algo como “Perto da vida”, parece aludir não apenas aos embriões ainda em gestação, mas ao estado dessas mulheres, apartadas do mundo e, de certa forma, das decisões com relação aos seus próprios corpos e trajetórias sociais.

A trama tem concentração dramática aristotélica, com a ação se passando em pouco mais que um dia, sem o recurso de flashbacks e limitada ao espaço interno do ambiente hospitalar, com seus corredores, quartos de pacientes, escritórios de enfermeiras, todos perfeitamente assépticos e claramente frios, em alguns momentos, inquietantes ou assustadores. Bergman filma esses espaços explorando meticulosamente seus vazios, suas linhas retas e a falta de adereços ou quaisquer traços esteticamente redentores, ambientes que acabam por se assemelhar a celas e antessalas de manicômios ou prisões.


Somos empurrados para o interior desse universo com Cecilia, cujo drama gira em torno de sua inabilidade de se conformar ao papel de mãe e esposa que lhe foi determinado. Ingrid Thulin expressa com grande verdade a dor dessa sensação de estar aquém do socialmente esperado, tão comum nas vivências femininas, mas raramente representada no cinema dessa época. Ciceroneada em alguns breves momentos por um marido (Erland Josephson) que cumpre com a coreografia das gentilezas sem jamais mostrar afeto ou proximidade genuínos, num trabalho acertado de direção de atores. A culpa de Cecilia em relação ao seu aborto é dilacerante, e ampliada pela protocolar recepção de médicos e enfermeiras.

A mise-en-scène intensifica essa sensação de abandono e desconforto, por exemplo, com a escolha de posicionar a enfermeira de costas para a paciente quando registra a entrada desta ao atendimento emergencial. Nessa direção, outra opção interessante é apresentar o médico que vai cuidar de Cecilia a partir de um close de sua mão segurando uma amedrontadora seringa, antes mesmo que conheçamos seu rosto, o que reflete o desnorteamento da personagem, empurrada para consecutivas salas sem receber nenhum tipo de tratamento mais humanizado ou maiores explicações sobre seu caso.

Os dramas das outras duas protagonistas apontam para mais vertentes da discussão sobre as liberdades sexual e social da mulher naquela época, abrindo um debate cuja profundidade praticamente não encontra eco em outras produções de grande escala do mesmo período. Hjördis (Bibi Andersson) é uma adolescente que tentou provocar um aborto pela segunda vez pressionada pelo pai do bebê, que claramente não quer assumir tal paternidade. A personagem sofre com o abandono do companheiro, mas também com a possível reação dos próprios pais, que reprovaram sua decisão de deixar sua pequena cidade natal para se tornar independente. Já Stina (Eva Dahlbeck), a única que parece ter o sólido apoio do esposo, espera para dar à luz seu filho, ansiosa e separada de sua família, legada a um quarto com duas desconhecidas.


As três mulheres desconhecidas, no entanto, logo criam uma pequena rede de afeto e apoio, cuidando carinhosamente umas das outras, desabafando suas angústias e dividindo experiências relacionadas à condição feminina. As intérpretes compartilharam ainda, junto a Barbro Hiort af Ornäs, que interpreta uma das enfermeiras, o prêmio de melhor atriz do Festival de Cannes de 1958.


O enclausuramento das personagens é palpável; sua solidão profundamente sentida pelo espectador – há somente um plano que mostra algum espaço externo a surgir pelas janelas, através das quais vê-se apenas um outro prédio, com suas janelas hermeticamente cerradas e logo encoberto pelas cortinas que uma das enfermeiras se apressa a fechar. De fato, esse aprisionamento espelha o encarceramento da mulher num corpo que está a todo tempo sob o jugo de uma sociedade opressora. Em realidade, a total hipocrisia do patriarcado é escancarada na tensão distância/proximidade entre Cecilia – a mulher que aborta e precisa, em meio às dores físicas e psicológicas, responder a questões acusatórias – e Stina, a imagem da mãe abnegada que acaba por sofrer com um parto que não respeita a ela nem a seu bebê. Por um lado, trata-se um aborto como um caso criminal e por outro, falha-se em dar qualquer assistência adequada a uma jovem e temerosa mãe, tratando aquele bebê já a termo como descartável e perfeitamente substituível.


Se o filme peca é justamente por sublinhar demasiadamente a densidade das questões que apresenta num momento histórico que talvez não permitisse uma construção um pouco menos assertiva, sob pena de que o público descartasse a seriedade da denúncia. Ao contrário, aqui a tensão jamais é amenizada e explode numa cena de parto dilaceradora, em que o corpo de Stina permanece disponível para a livre manipulação de médicos (entre eles, cabe notar, uma mulher) e enfermeiras, que impõem a determinados tratamentos sem sequer consultá-la, acabando por sedá-la contra sua vontade. A sequência, que traz claras imagens de violência obstetrícia muitas décadas antes de o tema ser abordado na esfera pública, causou comoção: relatos jornalísticos registraram um grande número de desmaios em diversas das salas em que o filme foi exibido. É preciso lembrar que em 1958 a experiência do parto não era relatada de forma honesta em praticamente nenhuma instância coletiva mais ampla.


Muito já se escreveu sobre a força e a miríade de nuances das representações femininas na obra de Bergman, da Elisabet Vogler de Liv Ullmann em Persona (1966) ao trio de irmãs de Gritos e Sussurros (1972), passando por mãe e filha em Sonata de Outono (1978). Todas essas personagens de cores vivas são construídas de forma sólida e autônoma em narrativas em que a experiência de ser mulher é retratada em profundidade e que dão voz à complexidade das suas lutas particulares num mundo dominado por homens. Repetidamente, a ideia do claustro ressurge como uma alegoria da impossibilidade do corpo feminino livre: na mudez de Vogler, na automutilação de Karin (Ingrid Thulin em cena-chave de Gritos e Sussurros), na dor crônica de Agnes (Harriet Andersson no mesmo filme). Todas essas mulheres incorporam – e eu escolho a palavra com cuidado – a desventura de ser mulher e tentar clamar para si o domínio do próprio corpo num mundo que parece disposto apenas a regulá-lo de todas as formas, determinando milimetricamente os espaços que ele pode ou deve ocupar. Nesse contexto, No Limiar da Vida é uma obra ousada, disposta a expor as entranhas dessa, por vezes, aterradora experiência.


Ao fim, como num círculo perfeito, o confinamento do espectador, iniciado com a entrada de Cecilia, se rompe com a saída de Hjördis, sem que a sigamos para seu futuro incerto após a alta hospitalar. E, sessenta anos depois do lançamento do filme, a sensação de ter deixado uma longa quarentena ainda se abate sobre o espectador, mesmo com o alívio proporcionado pela ponta de esperança não inteiramente justificada representada (calculadamente) pela mais jovem das protagonistas. Em realidade, o longo de todas essas décadas, talvez o impacto da obra tenha apenas amortecido, ao passo da consolidação de instâncias (um pouco) mais sutis de regulação dos corpos femininos – e por isso mesmo ainda mais insidiosas. Esquecido numa estelar carreira, o longa pulsa ainda com a força das questões que levanta e a atualidade de uma abordagem que prima por refletir, demarcar e denunciar os muitos confinamentos cotidianos vividos pelas mulheres a quem dá voz.


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