Persona, Ingmar Bergman
- Carlos Alberto Mattos
- 1 de abr.
- 3 min de leitura
As enfermidades, físicas ou espirituais, estão no centro de grande parte dos filmes de Ingmar Bergman. Persona (1966) ocupa lugar de destaque nessa temática, já a partir do fato de que foi escrito enquanto o diretor convalescia num hospital, vítima de pneumonia e infecção por excesso de penicilina. O famoso prólogo do filme se passa num misto de hospital e necrotério, espaço que um menino divide com idosos aparentemente mortos. Como no prólogo de Morangos Silvestres (1957) e na sequência de abertura de O Sétimo Selo (1957), o encontro com a morte lança uma sombra sinistra sobre tudo o que vem depois.

Nesses enigmáticos cinco minutos iniciais, Bergman simulou um fluxo do inconsciente a respeito dos seus medos e prazeres da infância: os pés descobertos na cama, encarar os mortos da família, o Cristo crucificado, o pênis e a vagina (uma boca vertical). As imagens de arquivo do garoto do gueto de Varsóvia e do monge em chamas no Vietnã são cenas que ficaram marcadas a fogo em sua memória. E junto com tudo isso, o próprio cinema: a visualização do filme correndo no projetor, a incandescência da lâmpada, o rompimento brusco da película. A dicotomia entre claustrofobia e transparência, sufocamento e claridade brutal formam a base estética de Persona.
Talvez seja esse prólogo o momento mais experimental de toda a filmografia de Bergman. Persona foi a primeira grande polêmica de sua carreira. Ele mandava pelos ares os cânones de comunicação e narratividade, assim como a atriz Elizabet (Liv Ullmann) constatava que o teatro, a maquiagem e a performance eram mentiras para dissimular o tédio e o vazio da existência. Essa decisão inconsciente está indicada no roteiro, como base para a perda da fala em meio a uma encenação. Naquele momento, Elizabet se volta da plateia para os bastidores (para nós), num movimento que leva do mundo exterior para o interior.
A partir daí, ela só ouvirá. Apenas duas frases sairão de sua boca ao longo do filme, duas negações: "Não faça isso!" (para não ser queimada) e "Nada". Instala-se, então, uma batalha de vontades e identidades entre ela e a enfermeira Alma (Bibi Andersson). O silêncio da atriz de alta classe exacerba as fraturas na persona(lidade) da enfermeira, pertencente à classe trabalhadora.
Dois arquétipos do romantismo se apresentam: o duplo e o vampiro. Elizabet suga a vida de Alma através de seus relatos. Como se isso não bastasse, ela ainda sorve o sangue no braço da enfermeira. Alma, por sua vez, sugere um aprendizado com o silêncio de Elizabet. Na verdade, cabe perguntar se são duas mulheres se conhecendo ou uma mulher só. Susan Sontag leu o filme como um duelo entre duas faces de uma mesma mulher – a que atua e a que vive; a corrupta e covarde (que fingiu ser mãe feliz) e a íntegra e franca (que fez sexo na praia e abortou).
São vários os indícios a confirmar a tese de Sontag. Numa cena de conversa à mesa, a voz interior de Alma soa como a voz de Elizabet. A enfermeira conhece em detalhes a história da gravidez da atriz. Quando o marido de Elizabet vem buscá-la, confunde-a com Alma. No final, ao saírem da casa de campo, há um sutil embaralhamento entre as duas mulheres.
Os rostos de Liv e Bibi são filmados em closes gigantescos contra fundos claros e frios, afetados por jogos de luz. Passam por diversos tipos de composição visual, inclusive um belíssimo plano cubista combinando corpo de uma e rosto de outra. Quando preparavam a imagem-ícone do filme, com os rostos das duas atrizes fundidos num só, Bergman e o fotógrafo Sven Nykvist escolheram as metades "feias" de cada um. Como curiosidade, vale lembrar que, diante do copião editado, Liv e Bibi acharam que uma era a outra.
Bergman propõe uma equivalência entre máscara (persona) e tela. Poderíamos acrescentar: entre pele e película. Persona é um filme sobre o cinema como janela e espelho. Coisa que funde e separa. Espelho e rosto, aliás, são elementos que atravessam toda a obra do cineasta sueco, bastando citar os títulos Através de um Espelho (1961), O Rosto (1958), Face a Face (1976), O Rosto de Karin (1984).
A mudez também fala alto nos seus filmes, seja na exploração frequente do tema do silêncio de Deus, seja em longas como O Silêncio (1963) e O Rosto, cujo personagem central, o mago Vogler (mesmo sobrenome de Elizabet) é um falso mudo.
Por fim, vale pontuar a enorme influência de Persona sobre filmes de várias latitudes que tematizaram a mescla de identidades femininas. Podemos mencionar, de memória, Três Mulheres (1977), de Robert Altman; Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, e Dois Casamentos (2015), de Luiz Rosemberg Filho.
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