Sorrisos de uma Noite de Amor, Ingmar Bergman
- Geraldo Veloso
- 31 de mar.
- 9 min de leitura
Por volta de 1960, a vida me dava rasteiras e me abria um leque de possibilidades de ver o mundo. A política, a filosofia, a literatura, a música, o país, a inteligência, tudo isso se multiplicava num prisma que espraiava luz para todos os lados (e cores). Entrei num cinema de Belo Horizonte, onde estava programada uma mostra de cinema contemporâneo, que começara um ano antes, promovida pela União Estadual dos Estudantes, a UEE. O cinema era o Roxy (antes era o Democrata, um cinema de segunda linha de um bairro de classe média da cidade que pautava a minha vida, o Barro Preto). Exibia um filme que não identifiquei imediatamente e que foi me hipnotizando progressivamente. Minha informação cinematográfica vinha da cinefilia – uma doença progressiva e que contaminava fortemente a minha geração – praticada em minha casa por meus irmãos, pais, primos, tios, etc. Mas o cinema que nos chegava era o de Hollywood. Às vezes, com muito sucesso diante do público, o cinema brasileiro (o musical/chanchada e os filmes da Vera Cruz). E, mais raramente, um filme italiano (do neorrealismo), um francês (Du Rififi Chez Les Hommes, de Jules Dassin – um americano exilado pelo macartismo, na Europa) e muito poucos de outras origens. O cinema japonês nos vinha com Kurosawa (Rashomon e Os Sete Samurais) e o cinema francês (que nos aguçava a curiosidade pela sua provocação erótica – sobretudo – com Martine Carol desvelando os seios, ousadamente. Mas não era a minha praia. Via muito os bangue bangues (da Republic), os musicais da Metro (a temporada era sempre iniciada por um festival anual de lançamentos da Metro Goldwin Meyer, no cinema Metrópole, onde ficávamos por horas em filas imensas esperando a main feature). E adorava o desenho animado de Disney, da Terrytoons. Meu pai me levava, todos os domingos a uma programação de cinejornais (Actualités Françaises, Fox Movietone, Atlântida, Herbert Richers e muitos outros produtores de news reels) misturados a shorts (O Gordo e o Magro, Os Três Patetas, Carlitos, Pete Schimidt e picaretagens de Jean Manzon). Ali, via a história contemporânea acontecer (as guerras da Coreia, da Indochina, da Argélia, as explosões de bombas atômicas e de hidrogênio – uma paranóia total). De repente comecei a ver o cinema de outra forma. Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti, De Crápula a Heroi, de Roberto Rossellini e muitos outros, me davam uma percepção que o cinema era “outra coisa”. Meu pai tinha-me apresentado, na sua fascinação pelo western (adorava um bange bangue – chegou a traduzir uma coletânea de horse operas que nunca publicou – Brett Harte era seu ídolo), a John Ford. Tinha visto, My Darling Clementine e, numa outra versão do seu talento, o seu roman a clef, The Quiet Man (Depois do Vendaval). E foi, provavelmente, a primeira vez que percebi que havia um “diretor” nos filmes.
Naquele momento começava a descobrir a literatura ideológica e da epidemia do existencialismo (Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus e outros). E muita literatura de formação ideológica (lia, com dificuldade, artigos nos cadernos de ensaio dos principais jornais do país que meu pai comprava). E, em 1958, houve o lançamento da Revista Senhor que vendíamos na livraria que meu pai criou, a Livraria Tapir, onde passei a trabalhar. Lembro-me de Jorge Amado autografando Gabriela Cravo e Canela, sentado em um banquinho, para uma multidão de leitores lá, na Tapir.

E, todos os dias, ao lado da crítica de Cyro Siqueira, no Estado de Minas, havia sempre uma chamada para sessões do CEC (o Centro de Estudos Cinematográficos), fundado por ele e uma turma de intelectuais de peso da cidade, em 1951.Ali, na crítica do Cyro, quase diária, já ouvira falar de Ingmar Bergman, do neorrealismo, de Ford e muitos outros segredinhos que fui me aprofundando progressivamente.
Na sessão do cine Roxy que mencionei, o filme me causou estranhamento. Uma comédia (Sorrisos de Uma Noite de Amor é uma comédia?) que acionava personagens lúcidos, capazes de definir estratégias afetivas, percepções da intimidade dos sentimentos, da sua revelação ativa, de uma consciência amarga da fragilidade afetiva dos seres humanos, de um pragmatismo afetivo, raramente colocados de forma tão clara e inteligente como eu via ao longo do filme.
Atores nitidamente extraordinários, “manejados” de forma corajosa, por um processo narrativo seguro, preciso, lógico (dentro da ilógica da mecânica dos sentimentos e afetos), por aquilo que começava a descobrir, rudemente (sem nenhum preparo específico, ainda para aquela estética/ética): havia uma peça de construção narrativa que era apenas de um dos maiores gênios que o cinema jamais produziu. Um metteur em scène (termo que muito cedo descobri o significado, herdado do teatro): Ingmar Bergman. E nunca mais abandonei a sucessão de trabalhos, onde que tive a oportunidade de ver sua progressão criativa. E me considerar um “seguidor” fiel desta figura excepcional do universo da criação e observação do mundo naquele momento de transformações único da segunda metade do século XX.
O cinema nórdico era um fato incontornável no desenvolvimento de um cinema diferenciado e bastante específico. Figuras como Mauritz Stiller e Viktor Sjoström tinham tido sua presença na criação de um cinema “especial”. Junto com Friedrich Wilhelm Murnau, Fritz Lang, Carl Theodor Dreyer, Erich Von Stroheim, Jean Renoir, René Clair e muitos, muitos outros, essas figures criaram aquilo que o cinema ambicionava ser: uma arte autônoma, dona de seu próprio estatuto narrativo, de uma linguagem. E estava obrigatoriamente “colado” nas transformações da história contemporânea. Se a literatura dava sequência à sua percepção do homem como indivíduo (o pensamento, sobretudo, a fenomenologia) dentro da história, o cinema a acompanhou nesse processo. O cinema foi se aproximando do umbigo de seus autores(termo defendido pelos cinéfilos/estudiosos e pretendentes à realização a partir do desenvolvimento teórico desse meio de expressão tão desprezado pela intelectualidade bem pensante, canônica, que não validava o cinema como arte maior).
Alguém falou: Joseph Von Sternberg transformava a anedota em epopéia e Howard Hawks tornava a epopéia, anedota. E esses dois pólos (anedota x epopéia) pairaram sobre o desenvolvimento do cinema.
Ingmar Bergman, um homem de formação luterana (seu pai era um pastor), rígida, mas sofisticada intelectualmente, nasce em 1918 (o último ano da Primeira Guerra Mundial) e se forma desde cedo se apropriando da percepção do cinema e, sobretudo, do teatro. E escreve. Começa roteirizando para Alf Sjoberg (um dos mais influentes realizadores de seu tempo, na Suécia – autor da obra prima, baseada em August Strindberg, que era um pouco mais velho que Bergman, nascido em 1914, Senhorita Júlia), o roteiro de Tortura do Desejo/Hets, em 1944. Logo em seguida, a Svenskfilmindustri, o chama para dirigir seu primeiro trabalho, Crise, que termina em 1946. E não para mais. Seu trabalho oscila entre um processo criativo compulsivo no cinema e no teatro.
Mas Bergman não cria (e não cai na armadilha) um fundamentalismo muito comum numa época em que o cinema buscava uma identidade e uma linguagem própria: a antinomia entre o cinema e o teatro. E o faz de forma interativa e completamente original. Utiliza a escola sueca de formação de atores, aperfeiçoa-a ao delírio e forma alguns dos mais brilhantes atores e atrizes do século. Cria a sua própria equipe, com a qual trabalha quase que regularmente (um filme realizado no verão e uma peça de teatro no inverno). E é incansável.
Seu universo de percepção nos traz uma forma de ver o mundo inteiramente pessoal. Vive (e busca uma visão especular) a história do seu mundo, do seu tempo. A crise dos sentimentos é uma constante em seu trabalho. O choque entre a perplexidade humana diante do possível apocalipse (as explosões de Hiroshima e Nagasaki transformam completamente o pensamento humanista contemporâneo). A milimétrica observação da transformação dos sentimentos é a tônica de toda a estética que testemunha o século XX (sobretudo o cinema). O cinema de Rossellini (Viaggio in Italia, sobretudo), de Visconti (Rocco e seus irmãos), de Fellini (A Doce Vida), de Antonioni (de L’Avventura) é o que mais se aproxima do que Bergman produzia na Suécia. A Nouvelle Vaguenos traz o cinema da crônica do cotidiano e Godard se torna o etnógrafo do mundo em torno de si (seguindo sua vocação formacional acadêmica) e a busca (excessiva?) da metalinguagem.
Mas Bergman é idiossincrático e autoritário. Adora Fellini (um católico rebelde e primitivo) pois se identifica com a sua iconoclastia de origem cristã (Bergman, um rebelde luterano – uma reação à rigidez paterna/materna?) e se amam mutuamente. Mas despreza (ou aceita com relutância) o cinema de Antonioni. Odeia Godard (seu grande admirador, no entanto). É amado por figuras como Billy Wilder (que, por sua vez, também compartilha seus sentimentos diante de Godard). E apadrinha o aparecimento de um novo ícone (místico/metafísico), Andrei Tarkovski. No Brasil, logo depois que começa a surgir para o mundo, Bergman é descoberto por Walter Hugo Khouri que o introduz no campo da cinefilia local. E o incorpora em uma de suas pretensões poéticas (juntamente com D. H. Lawrence).
Sorrisos de Uma Noite de Amor, realizado em 1955, lhe traz uma reconhecimento internacional com a premiação especial do júri de Cannes. É provavelmente o seu filme menos pessoal. Sua habilidade em tecer uma teia de sentimentos e manipulações nos remete à tradição dramatúrgica das redes de trânsito afetivo de um Racine, de um Corneille, de um William Shakespeare (uma de suas mais fortes influências). Este filme – não sei por que – me remonta às tramas transversas e épicas (do ponto de vista de trocas de situações sociais, de afetos, projetados em um momento da história do século) que vemos em La Règle Du Jeu, a obra prima de Jean Renoir ou em Sonhos de Uma Noite de Verão, de Shakespeare (o desafio da mãe da personagem principal, a atriz Desirée Armfelt – Eva Dahlbeck, suprema – representada pela maravilhosa velhinha – ah, as velhinhas de Bergman! – Margit Carlqvist, que semeia a caçaamorosa, os rearranjos afetivos, que patrocina em festa que promove, a pedido da filha, com a oferta de um vinho que traz uma gota do amor de uma jovem donzela e uma outra gota do sêmen de um jovem efebo, nos remete aos filtros da peça mágica de Shakespeare), às confusões do destino (a tentativa de suicídio do jovem filho do advogado, Frederik Egerman – o extraordinário ator bergmaniano, Gunnar Björnstrand – que o faz, cair em um dispositivo que a casa doida da mãe da atriz Desirée apresenta: uma cama que avança sobre o quarto do apaixonado secreto – nem tanto assim – da jovem mulher de Egerman, mantida virgem e intocada pelo velho sátiro – Anne Egerman/Ulla Jacobsson, dando a chance do jovem casal – o filho, pretendente a pastor luterano e a sua “madrasta”, Anne – se encontrar e se amar).
Os jogos afetivos, perversos, transversos, são pontuados pelos personagens “puros”: Petra, a governanta representada pela genial (e constante companheira de trabalho de Bergman), Harriet Andersson (linda e dona de seu mundo afetivo) e o cocheiro da casa. A poesia é sensorial. Para o personagem do cocheiro, a noite sorri três vezes. As noites suecas que não duram muito. Uma harpa discreta (a música de seu constante colaborador Erik Nordgren) pontua os capítulos da trama.
Uma cuidadosa, requintada e elaborada narração cinematográfica, fica a cargo de seu fotógrafo, Gunnar Fischer (seu colaborador permanente até Através do Espelho, de 1961, quando descobre Sven Nykvist, que passa a ser seu diretor de fotografia até o final de sua obra), e de seu cenógrafo.
Um elenco perfeito. Jarl Kulle, faz o papel de um militar aristocrático, arrogante e fanfarrão (é também um ator que está no primeiro filme em cores de Bergman – também apresentado como uma comédia – Para não Falar de Todas essas Mulheres, de 1964).
Bergman foi sempre um autor que transformou as mulheres em protagonistas. Há filmes onde os homens são apresentados melancolicamente como seres fracos e manipuláveis por mulheres fortes. Algumas obras primas falam disso (além de Sorrisos de uma Noite de Amor) como Gritos e Sussurros, Quando as Mulheres Esperam, Sonhos de Mulheres, No Limiar da Vida, Persona, O Silêncio, A Paixão de Ana e praticamente toda a sua obra.
Sua saga dos sentimentos tem uma obra-prima, entre outras, Sede de Paixões, uma pungente jornada de um casal em crise, numa viagem de trem da Itália.
Filmou muito para a televisão, vários seriados, sempre com a tônica da percepção da crise afetiva, sobretudo. Cenas de um Casamentoque, décadas depois, nos trouxe uma sequência, um de seus últimos trabalhos, Sarabanda.
Seus filmes mais “confessionais”, certamente, foram Morangos Silvestres (uma obra-prima que traz o seu mestre, Viktor Sjoström, como o ator que representa o personagem do professor Isak Borg) e, seu mais diretamente confessional, Fanny e Alexander (e seu making of, fantástico).
Nunca deixou de produzir algo que pudesse ser avaliado como abaixo do critério de genialidade (minha opinião): A Flauta Mágica(sobre a ópera de Mozart), O Sétimo Selo, Mônica e o Desejo, Noites de Circo e muitos mais.
Cercou-se de atrizes extraordinárias: Liv Ullmann (com quem teve uma relação afetiva apaixonada), Ingrid Thulin, Eva Dahlbeck, Gunnel Lindblom, Ulla Jakobsson, Bibi Andersson, Harriet Andersson, Maj Britt Nilsson. E atores: Gunnar Björnstrand, Max Von Sydow, Jarl Kulle, Erland Josephson (seu amigo desde sua revelação para o cinema) e muitos outros.Sorrisos de Uma Noite de Amor é, em minha opinião, um dos mais primorosos trabalhos de um gênio da lucidez, que nos apresentou uma obra única, desconcertante, pluriforme e genial. Um dos mais importantes cronistas do nosso tempo. A minha geração aprendeu muito a perceber o mundo em que nos foi dado viver pela ação criativa e reflexiva de Ingmar Bergman.
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