A Lírica contracultural de Nauro Machado
- Ricardo Leão
- 31 de mar.
- 18 min de leitura
Venho aqui, mais uma vez, comentar a poesia de Nauro Machado. Aos que já estão habituados a ver-me nesta tarefa, resta a pergunta: “O que há mais a dizer?” E é essa é uma questão, não fosse o fato de que a literatura brasileira é feita, cada ve mais, de grandes esquecidos que são soterrados, de modo inexorável, pela frenética necessidade cultural que temos de novidades, ou de pseudo-novidades. O fato é que nós, brasileiros, não estamos acostumados, talvez por conta de nossa insaciável sede de modernidade (o que tem um custo incalculável em termos de cultura, como sempre), a estabelecer leituras profundas de nossos grandes autores, pois os sacrificamos, com enorme frequência, no altar das vaidades daqueles desejam ocupar, justa ou injustamente, o cenário, disputando os escassos leitores que temosem nosso país. Ainda mais, quando falamos de poesia. A poesia, num país de não- leitores, é cada vez mais um ofício de poetas para poetas, a ponto de grandes concursos literários do país e da língua portuguesa cada vez mais privilegiar a prosa, como a condenar o gênero, que não rende grandes vendas, ao esquecimento e ao silêncio. Editoras recusam-se a publicar autores que já não venham consagrados por grandes prêmios. Os poetas, então, em debandada, acodem às editoras independentes e às edições particulares. Então, vem a pergunta: A quem interessa continuar produzindo poesia? Sobretudo, a quem interessa continuar falando d poesia? Como falar de um gênero que, até hoje, não conseguiu se tornar sucesso devendas e aceitação de público? Especialmente, em um país como o nosso, onde letristas são mais aceitos? No entanto, receio que a poesia, ao longo de toda a história da humanidade, nunca foi efetivamente lida como um fenômeno de massa, e tampouco, creio, jamais o será.Disto isto, resta-nos avaliar o que poetas como Nauro Machado, em um território cada vez mais dominado por uma poesia que ambiciona ser prosa (quando não subprosa literária) têm a dizer aos leitores de poesia, o reduzido público cativo do gênero, cada vez mais segregado aos que efetivamente praticam a arte do verso, ainda que de forma diletante, como meros amantes da palavra que são todos aqueles que buscam através do gênero lírico (embora a poesia não seja necessariamente restrita ao lírico) alguma transcendência do mundo ordinário dos sentidos. A grande questão é justamente essa: a poesia de Nauro traz consigo uma contribuição nacontracorrente da cultura dominante. Ler a poesia de Nauro (assim como de seus semelhantes coevos e contemporâneos a nós) é, hoje, com toda a certeza, um ato contra-cultural, em razão das peculiaridades díspares de sua arte. Vamos, então, por partes.

Nauro dialoga essencialmente com a modernidade lírica, como já afirmei alhures e algures. No entanto, esse diálogo com a modernidade não abandonou jamais, em sua vasta trajetória, os instrumentos clássicos da poesia, embora também tenha utilizado, com enorme frequência, quase todos os instrumentos técnicos acumulados com as vanguardas e, até certo ponto, com os experimentos válidos do século XX. Quando me reporto aos instrumentos clássicos da poesia, refiro-me, claro, a algumas características que considero históricas no gênero: verso, metro, ritmo, metáfora. Ouseja, na poesia de Nauro estes elementos são levados, como em poucas líricas do século XX (talvez o único nome comparável, na literatura brasileira moderna, seja o de Jorge de Lima, sobretudo em Invenção de Orfeu), às mais radicais consequências.
A poesia de Nauro, ainda que se valha da estrutura do verso com ou sem metro (embora, de forma dominante, o metro seja o seu instrumento predileto), abandona, com rara eficácia, a iconoclastia de algumas vanguardas que pretendiam até mesmo desintegrar a unidade estrutural do verso, substituindo-a pela visualidade da palavra, em quase estado de ideograma, estabelecendo, portanto, uma ruptura com osemântico, e, dessa forma, tentando potencializar o significante no lugar dosignificado.
No entanto, não é de hoje que se fazem experimentos visuais, e tampouco oséculo XX inaugurou a tentativa de potencializar o significante acima dosignificado. Ao longo da história da poesia ocidental, por mais de uma vez os poetas compuseram poemas visuais, criaram jogos semânticos, experimentos sintáticos, objetos verbais. O poema visual mais antigo que se tem notícia é o “Ovo”, de Símias de Rodes, composto por volta de 300 a. C., no qual o poeta distribui os versos, com métrica crescente e decrescente, em forma de ovo. Trata-se do que, em termos modernos, batizou-se de caligrama (um poema cujas linhas ou caracteres gráficos formam um figura relacionada ao conteúdo ou mensagem do texto poético), experimento visual muito praticado entre futuristas europeus, como, por exemplo, Guillaume Apollinaire. Vamos, no entanto, ao “Ovo” de Símias de Rodes:
O OVO
Acolhe este novo urdume que, animosa
Tirando-o de sob as asas maternas, o ruidoso
e mandou que, de metro de um só pé, crescesse em número
e seguiu de pronto, desde cima, o declive dos pés erradios
tão rápido, nisso, quanto as pernas velozes dos filhotes de gamo
e faz vencer, impetuosos, as colinas no rastro da sua nutriz querida,
até que, de dentro de seu covil, uma fera cruel, ao eco balido, pule
mãe, e lhes saia célere no encalço pelos montes boscosos recobertos de neve.
Assim também o renomado deus instiga os pés rápidos da canção a ritmos complexos
balindo por montes de rico pasto e grutas de ninfas de fino tornozelo
que imortal desejo impele, precípites, para a ansiada teta da mãe
para bater, atrás deles, a vária e concorda ária das Piérides
até o auge de dez pés, respeitando a boa ordem dos ritmos,arauto dos deuses,
Hermes, jogou-se à tribo dos mortais,e pura,
ela compôs na dor estrídula do parto. benevolo.
(Tradução direta do grego de José Paulo Paes)
Ao longo da história, no entanto, a experiência verbal nesse sentido se repetirá mais de uma vez. É o que acontece, mais precisamente aqui no Brasil, com o poeta barroco baiano Anastácio Ayres de Penhafiel, no século XVIII, ao compor seu Labirinto cúbico, uma espécie de experimento concretista avant la lettre.
Mais recentemente, na França da década de 60, surgia no campo artístico um grupo diferenciado de artistas que não ousavam se autodenominar como artistas, mas algo mais como “arquitetos” da palavra, ao lançar um novo olhar sobre a palavra e objeto artístico-literário, em prosa ou verso. Refiro-me ao grupo Oulipo 2 (Ouvroi de Littérature Potentielle, ou Ateliê de Literatura Potencial), cuja proposta se distingue dos demais grupos do período por uma recusa à escrita automática e inconsciente dos surrealistas, defendida por Raymond Queneau, um ex-integrante do Surrealismo, do qual se afastou em razão de diferenças ideológicas, teóricas e, sobretudo, pessoais. Ao contrário dos surrealistas, os oulipianos pretendiam, em seustrabalhos, uma literatura voltada para o estudo da imanência, do jogo com ossignificantes, através da potencialização estética das arbitrariedades gráficas,fonéticas, morfológicas, lexicais, sintáticas e semânticas da língua e da literatura. Não à toa há uma proximidade muito grande com o entusiasmo científico pela descrição e análise da língua e da literatura, a partir do estruturalismo, herdeiro direto da linguística de Ferdinand de Saussure.
Contudo, outra forma de estabelecer tal recusa era a negação da concepçãoromântica de artista, escritor ou poeta como um autor-demiurgo e, por igual, da própria noção de inspiração, substituindo-a por uma construção consciente deliberada da palavra, estabelecendo, portanto, no lugar, o primado da objetividade do texto literário, cuja exploração deveria se dar no interior de seus recursos expressivos em nível gráfico e visual, fônico, morfológico, lexical, sintático e semântico. A fim de alcançar tal objetivo, os oulipianos propuseram a utilização de formas fixas e restrições estruturais (as chamadas contraentes, ou, em português, coerções), ao estilo de jogos matemáticos com padrões de repetição e limitações algébricas e geométricas.
No entanto, é preciso ressalvar que os próprios oulipianos não se reconheciam como movimento literário, pois os seus autores eram completamente contrários e alheios às teorias de vanguarda. No lugar disso, propunham uma literatura lúdica, ao mesmo tempo em que lúcida, mas livre da concepção de autor como criador, e de literatura como “Grande Literatura”, ou seja, como um painel de obras-primas. O que os oulipianos fizeram, efetivamente, foi criar uma modalidade de produção de textos com características literárias, mas com a possibilidade de ser feitos por umconjunto muito amplo de sujeitos, e não necessariamente artistas da palavra, mas escritores que fossem, ao mesmo tempo, matemáticos e engenheiros na construção de objetos verbais. Na concepção oulipiana, portanto, a escrita era acessível a todos, e, dessa forma, todos poderiam ser autores, todos poderiam escrever, uma vez que a literatura é linguagem, e a escrita é um produto da linguagem, e não necessariamente do sujeito que a produz, de forma que o grupo desenvolveu as contraintes como regras de um jogo que pudesse libertar a escrita da noção de gênio criador, de artista, de demiurgo, em todos pudessem, de forma democrática, produzir textos interessantes:
OULIPO? Qu’est ceci? Qu’est cela? Qu’est-ce que OU? Qu’est-ce queLI? Qu’est-ce que PO? OU c’est OUVROIR, un atelier. Pour fabriquerquoi? De la LI. C’est la littérature, ce qu’on lit et ce qu’on rature. Quellesorte de LI? La LIPO. PO signifie potentiel. De la littérature en quantitéillimitée, potentiellement productible jusqu’à la fin des temps, en quantités énormes, infinies pour toutes fins pratiques. QUI? Autrement dit qui est responsable de cette entreprise insensée? Raymond Queneau, dit RQ, un des pères fondateurs, et François Le Lionnais, dit FLL, co-père et compère fondateur, et premier président du groupe, son Fraisident-Pondateur.Que font les OULIPIENS, les membres de l’OULIPO (Calvino, Perec,Marcel Duchamp, et autres, mathématiciens et littérateurs, littérateurs-mathématiciens, et mathématiciens-littérateurs)? Ils travaillent. Certes,mais à QUOI? A faire avancer la LIPO. Certes, mais COMMENT? Eninventant des contraintes. Des contraintes nouvelles et anciennes, difficiles et moins diiffi ciles et trop diiffi iciiiles. La Littérature Oulipienne est une LITTERATURE SOUS CONTRAINTES. (BÉNABOU;ROUBAUD, 2004, p.5, grifo do autor).
“OULIPO? O que é isso? O que é aquilo? O que é OU? O que é LI? O que é PO? OU é OFICINA, um ateliê. Para fabricar o quê? A LI. É a literatura, o que se lê e o que se rasura Que tipo de de LI? A LIPO. PO significa potencial. A literatura em quantidade ilimitada, potencialmente produtível até o fim dos tempos, em quantidades enormes, infinitas para todos os fins. práticos. QUEM? Em outras palavras, quem é responsável por essa empreitada insensata? Raymon Queneau, chamado RQ, um dos pais fundadores, e François Le Lionnais, chamado FLL, outro pai ecompadre fundador, e primeiro presidente do grupo, seu Fraisident-Pondateur. O que fazem os OULIPIANOS, os membros do OULIPO (Calvino, Perec, Marcel Duchamp e outros, matemáticose escritores, escritores-matemáticos e matemáticos-escritores)? Eles trabalham. Certo, mas em QUÊ?Em fazer avançar a LIPO. Certo, mas COMO? Inventando contraintes. Contraintes novas e antigas,difíceis e menos difíceis e muito diiffíícceis. A Literatura Oulipiana é uma LITERATURA SOB CONTRAINTES.”
Como o objetivo deste breve ensaio crítico não é deter-me nas produções doOulipo em particular, recomendo aos leitores a pesquisa do tema. Verão que o grupo se especializou, mais especificamente, na criação de regras e coerções para a produção do texto literário. O grupo afirmava, com frequência, que todo escritor cria um conjunto de regras para a produção de seus textos, de forma consciente ou não. Portanto, segundo os escritores-matemáticos do Oulipo, não eram as regras ou formas fixas que prejudicavam a liberdade de criação da escrita, mas o fato de que aquele que escrevia muitas vezes não se propunha a um domínio consciente daescrita e da palavra, por meio da utilização consciente de limitações, regras e formas que, no lugar de prejudicar o texto, potencializavam ainda mais a produção, uma vez que estabeleciam um percurso prévio para que a criatividade se manifestasse. Em suma, na visão dos oulipianos, o artista é tanto mais consciente quanto mais domina, de forma consciente, um conjunto de regras e formas para a produção textual, de modo a potencializar a produção de sua escrita por meio do domínio cada vez mais exímio e objetiva de tais formas e regras. Assim, o artista que cria, mas não éconsciente das próprias regras e formas e cria, segundo os oulipianos, estácondenado a não dominar todos os recursos expressivos que dispõe para a efetivação da escrita. E, assim, escreve uma obra que, a rigor, não potencializou uma contribuição significativa.
E é justamente nesse ponto que desejo estabelecer uma conexão com a obra de Nauro Machado. Afirmei linhas atrás que ler Nauro é hoje uma atitudecontracultural, em virtude das características de sua poesia. Com efeito, o que hoje domina o senso comum sobre o verso pouco tem a ver com o poético, mas com uma percepção difusa de que poesia é apenas fragmentar um texto em prosa em versos, e assim, com o auxílio de algumas imagens de alguma eficácia metafórica (quando muito), fazê-lo parecer poesia. E é preciso atentar muito a este fato.
Fragmentar um texto em verso não é, toda vez que o fazemos, um acontecimento poético. Embora haja uma tradição de prosa poética desde o século XIX, particularmente entre os simbolistas, a pretensão era demonstrar que, sem o auxílio do metro, era possível produzir o fenômeno poético em prosa, mas sem abandonar ritmo e metáfora.
E aqui está o calcanhar de Aquiles da produção pretensamente poética demuitos versejadores. Mesmo que o ritmo do texto não seja necessariamenteencantatório, ao estilo de um cantabile muito melódico, a ponto de se poder extrair literalmente música do verso, o verso sempre pressupõe, para atingir sua eficácia expressiva, a utilização de uma infinidade de recursos que podem vir dos mais diferentes extratos linguísticos: gráfico, fonético, morfológico, lexical, sintático, semântico. O uso consciente de tais recursos expressivos caracteriza, e sempre caracterizou, a arquitetura da composição lírica, uma vez que o verso poético lírico tem uma longa tradição relacionada às suas origens com a música, já que, em várias tradições literárias, a poesia é o resultado direto da liberdade do texto em relação à composição musical, como no caso grego ou, em nosso caso mais particular, com o exemplo lusófono, oriundo do Trovadorismo.
Por esta razão, desde o final do século XIX, muitos apontaram que a prosatambém pressupõe ritmo, embora mais difuso que o ritmo explícito do verso lírico. Contudo, com a ênfase que foi dada à narratividade (particularmente, após a obra poética de Edgar Alan Poe e de seu discípulo, Charles Baudelaire), a poesia veio se aproximando do ritmo menos perceptível da prosa, e, com isso, somado à descoberta do verso livre de Walt Whitman, a capacidade de expressão em verso sem o auxílio ao metro, por exemplo, tornou-se a tônica das vanguardas, ao lado da exploração dametáfora dissonante, do oximoro, de uma arte mais centrada no poder da imagem e do sentido do que necessariamente no ritmo e na forma. Com isso, e em nome de todos os experimentos ao estilo de Un coup de dés jamis n’abolira le hasard, de Mallarmé, a poesia vem explorando outros territórios de significação, mas de uma forma muito perceptível, mantendo a constante do verso e da metáfora, embora com alguns hiatos experimentais na poesia visual e na tentativa de ruptura com a tradição.
Contudo, a tradição lírica impõe ainda aos poetas de todo o mundo o esforço diante do verso tradicional. Afinal de contas, é ainda válido produzir poesia com tais recursos? É possível utilizá-los, e ainda ter uma dicção moderna, contemporânea, sem desdenhar dos clássicos, mas reutilizar as formas e regras do clássico para compor o moderno? Nesse sentido, não é necessário fazer muitos esforços para encontrar poetas que, no limite do diálogo do clássico com o moderno, ousaram retornar à prática do soneto, das baladas, do rondó, do madrigal, das trovas e até da dicção clássica, para compor uma obra que, a despeito dos instrumentos tradicionais,está vazada de uma poderosa consciência do repertório de conquistas dasvanguardas.
Poderia começar com o exemplo de Fernando Pessoa, na multiplicidade desuas vozes e da sua própria, como ortônimo, como também rememorar que poetas muito modernistas, como Drummond ou Cabral, não abandonaram, por completo, em suas devidas proporções e particularidades, o uso do ritmo, do metro e mesmo da rima, recursos expressivos muito tradicionais da poesia. Poderia citar de novo Jorg de Lima, ou Cecília Meireles, entre tantos. Mas sou obrigado a analisar o caso deNauro mais detidamente, pois este é o propósito deste ensaio, e já me tardo em fazê- la a essa altura do texto. Pois vamos a ele. O que causa assombro na poesia de Nauro é que, apesar de ter incorporado o verso livre e branco, ao longo de sua obra não hesitou em utilizar os instrumentos clássicos da poesia para cantar e decantar o moderno, o contemporâneo, embora o metro, a rima, e todos os recursos tradicionais da arte poética, já estivessem nohorizonte de sua prática lírica. O poema inaugural de Campo sem base (1958), livro de estreia, nesse sentido, não poderia ser mais emblemático da pretensão de um poeta que já começa com a plena consciência de sua tarefa desafiadora, no intuito de instituir um novo modo de compor, uma nova dicção, completamente à margem do que, até então, já tinha sido realizado entre os demais poetas brasileiros:
Me crio em nova forma.
Não a que em quartos, corpos gastos sofrem, tão sós,
pastos vis de um mútuo asco solitários. Bem os sei também
distendidos, parto enfim da morte, não a própria,(dificílima)
mas suja e dividida com outrem. Me crio em nova forma.
Uma, incessante, dia meu, –árduo,
que sobre o piso a comida de ontem jaz.
Sabe a tarde, loucura, carne ou legume?
No banho seu odorme penetra – sabre.
Foi ejá não é, coube e já não cabe: cai, ressequida, lúcido ódio!
Me crio em nova forma. Não esta, mas outra maior, dia meu, mais árduo,
onde meus ócios secam,apodrecidos, no tédio das palavras.
Ao longo deste livro, Nauro condensa a sua experiência poética, e sua mestria no soneto é patente na intensidade lírica de Soneto da derrota, cujo ritmo embriagante anuncia toda uma carreira dedicada a atingir novos níveis expressionais através desta forma fixa, que os modernistas de primeira hora, com algumas exceções, abandonam com a iconoclastia dos que desejam por abaixo o edifício dos recurso caducos. Não é o caso de Nauro, neste antológico e sólido soneto:
Meu pai, mas já que tudo me derrota, se tudo, pai,
me leva de vencida,se na mata teu vulto ainda bota um corpo enorme,
de lua destruída,dá-me ao menos o indício da rotaque me leve a ti,
na noite perdida,ou então a pureza da infância remota,
a mim, pai, que vivo a angústia da vida!
Se neste chão me corrompe o poema,não vês que suo e sofro a luta suprema,
que esta carne em solidão aspira a um céu?
Se na mata rebentas num soluço,dá-me a paz, pai, a mim que caio de bruço,
sob cem janelas de um arranha-céu!
Daí em diante, ao longo de uma carreira que totalizou mais de 40 livros depoemas, além dos inéditos, é possível observar algumas práticas constantes na lírica de Nauro. A primeira que salta aos olhos é o retorno triunfante do verso discursivo, construído em torno de uma sintaxe em que os recursos lexicais e semânticos revolvem todo o patrimônio erudito da língua portuguesa, sem, no entanto, cair no vazio retórico de um poeta que pouco tem a dizer. Ao contrário, a semântica e o campo lexical da poesia naurina são substanciais, repletos de um arsenal metafórico que salta à leitura pelo impacto de sua força verbal, traduzida em uma dicção tensa e violenta, vazada por uma angústia existencialista que poucos poetas brasileirassouberam dormar ao longo da história literária de nosso país. Contudo, é o domínio expressivo da língua portuguesa, em todos os seus recursos expressivos, em todos os seus extratos (gráfico, fônico, morfológico, sintático, lexical e semântico), que torna a poesia de Nauro um fenômeno único, a bem dizer um raro artífice do que, em termos linguísticos, o idioma lusitano tem de melhor, de mais rico e mais fecundo.
O segundo aspecto de sua lírica é o uso intensivo do metro, com algunsesparsos poemas em verso livre, aliado à sonoridade da rima e do ritmo. Contudo, ao longo da evolução da poesia naurina é possível observar que estes aspectos se consolidam e cristalizam em uma ambição que atinge o fôlego épico, sobretudo à medida que sua vocação para o soneto, forma fixa na qual Nauro se destacou no cenário da lírica brasileira do século XX, torna-se cada vez mais pungente e extraordinária, o que se verifica pelo volume destacado de páginas que esta forma fixa ocupa em sua obra. Ao todo, são mais de mil sonetos, distribuídos ao longo de seus livros e de alguns totalmente dedicados a ele, como é o caso dos formidáveis As orbitas da água (1980) e Apicerum da clausura (1985), entre vários outros igualmentemagistrais.
No entanto, ao lado do soneto, também salta aos olhos uma constante bemperceptível: os poemas curtos. Em todos os livros de Nauro, exceto aquelesexclusivamente consagrados ao soneto, é possível encontrar uma expressiva coletânea de poemas breves, os quais compõem, ao longo de toda a trajetória lírica do poeta, um painel vigoroso de sua capacidade invulgar de síntese, cuja força encontra semelhança em poetas como Orides Fontela, com a singular nota de que o fecundo poeta maranhense deixou uma obra, nesse campo específico de sua vasta produção, bem mais copiosa, e arrisco-me a dizê-lo, bem mais inventiva que sua contemporânea paulista. A fim de demonstrar a consciência que tinha desse aspecto de sua lírica, Nauro publicará o livro Funil do ser (1995), cujo subtítulo é Canções mínimas, inteiramente composto de poemas curtos, em que a utilização do metro potencializa, na forma de uma contrainte oulipiana, sem o sê-lo, o fôlego e o vigor lírico de sua obra:
Às vezes percebo ao final dos dedosabrindo a janela,
que a vida renasceda curva da noite perfeita e humana,
ao final dos dedos
abrindo a janelapara outra manhã.
Mas, além dos sonetos e poemas curtos, a obra de Nauro é atravessada por um conjunto de poemas de grande fôlego, caudalosos, de metro e tamanho variados, que inundam o leitor, à sua passagem, de uma poderosa corrente elétrica de natureza lírica. A potência verbal dos poemas de Nauro, comparável à família lírica à qual pertence (Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Maranhão Sobrinho, Jorge de Lima, entre outros), dos quais se aproxima pela inequívoca herança direta de Baudelaire e dos simbolistas, impressiona pela constância com a qual manteve, em mais de 40livros de poemas, um poderoso caudal de poesia pura, sem concessões aos modismos e rupturas que, em suma, nada tinham com o que romper, senão com a tradição do verso. Ao contrário da corrente coloquialista da lírica brasileira, Nauro manteve-se fiel a uma poesia densa, robusta e completamente voltada à exploração do eu, da consciência e da existência, em um verdadeiro esforço existencial (e não necessariamente existencialista) de sondagem das profundezas de sua individualidade.
E é neste sentido que a leitura de Nauro é uma atitude contracultural. Fiel àconsciência e à concepção de que a poesia necessita de coerções e regras para que a potência lírica se revele nas mãos de um hábil poeta (o que não quer dizer, em absoluto, que o verso livre não seja uma coerção, muito ao contrário), o solitário poeta maranhense, que consagrou toda a sua vida pessoal à poesia (gênero que, no Brasil, significa muitas vezes estar à margem de toda a sociedade, frequentemente iletrada), não cedeu à pressão daqueles que diziam que a métrica, o ritmo e a rima, o soneto e o verso tradicional eram fósseis retóricos que deveriam ser banidos da. criação literária. Afeito à convicção de que poesia exige muito mais do que versos fáceis e óbvios, de que o fôlego não necessariamente reside em uma forma específica, mas exige o amplo domínio de todas as formas e recursos expressivos, com absoluta consciência daquilo que se faz e porque se faz, Nauro criou uma obraque é um verdadeiro monumento à língua portuguesa, uma cordilheira lírica que se impõe no horizonte de todo aquele que ambiciona um verdadeiro desafio pessoal de escrita poética.
Diante desse desafio, é que é plenamente possível estabelecer uma correlação entre o que os oulipianos defendiam e o que Nauro realizou. Como poucos poetas da lírica brasileira, e até mesmo como raros poetas da língua portuguesa, o grande poeta maranhense desenvolveu uma rara mestria e um amplo domínio dos recursos e regras que tinha à disposição. Desenvolveu ainda uma dicção muito peculiar, totalmente singular, no soneto, renovando aos limites da genialidade a esgotada e surrada forma fixa (que muitas vezes renasceu nas mãos hábeis de poetas revolucionários, como Fernando Pessoa) através da utilização intensa de oximoros, metáforas e imagens ousadas e inusuais, através de uma semântica poderosa e exuberante, bem como por meio de um ritmo inebriante, de uma musicalidade envolvente e encantória, o que faz de seus sonetos um dos acervos líricos mais fascinantes e vivazes de toda a história da poesia brasileira:
Letra de fogo e de ouro do soneto,letra capaz de fé aos que, sem fé,secarão na alma a carne do esqueletovazio e nu, contudo ereto ao pé.Letra de fogo e de ouro às vezes preto,fosforescência do útero à mulher,tambor e estrelas, túrgido amuletoda escuridão que, eterna, já me quer.Canta, soneto, minha morte à rua,canta, soneto, à morte minha e tuatrombose enfim, mas fim insubmisso,entre a terra e o pavor, meu céu devasso,entre o Ser e o meu ser, o infindo espaço,entre mim e ninguém, meu nada, só isso.
Abjeto escravo da fêmea e do feto,abjeto escravo do verme do medo,escravo do olho, para sempre abjetoeternamente!, escravo desde o dedomortal e seco, e nu, apontando eretoao súplice silêncio do arvoredo,onde, sem bosque, o pássaro quieto,morto tomou, calado desde cedo.Loucura d’alma em chuvas de loucura,louca que canta e dança na amargura
de tudo alheio, por perto que estiver:dormir! dormir! escravo dos espaçossem nada dentro, sem nada de braços,sem nada, exceto o nada que ainda é!
Depois de possuído o que é sonhadona idéia-gesto do que a ser restou,
embora em vão tateie o inútil ladosobre onde atônito e alheio me vou,
depois de possuído o desejado e o desejo ainda reste ao que faltou
e o desejo ainda cresça no estirpado depois de possuído no que sou -,
depois de possuído o impossuído,talvez me faça ser o meu ser mais crido,
talvez me faça ser o meu talvez,tal dia embora,
tal a noite vinda,tal sonho que real enfim se finda
e que, estuprado embora, virgem crês.
Ao lado de tudo isso, Nauro soube também, como poucos, expressar a angústia de todo um tempo, através de uma poesia altamente filosófica, densamente reflexiva, capaz de expressar, através de poemas e versos poderosos, de rara potência lírica, um repertório vasto de questões do ser-no-mundo, que não encontra paralelos mesmo entre os nomes mais consagrados do século em que viveu a maior de sua vida e obra. São substantivos os momentos em que Nauro alcança, com alto e impressionante poder expressional, a grandeza de uma poesia de dimensões universais, muito alémdos localismos e obviedades, como neste alentado Fila indiana:
Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto,
século após séculos, continuam
(a conduzir seus madeiros na perícia dos próprios dramas)
um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século após séculos,
e de novo um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.
Ou, ainda, na impactante síntese de Os atletas:
Fazem ginástica na tarde imóvel:
direita e esquerda, o mundo filtra angústia.
Fazem ginástica desde há muito…
Amanhã estarão mortos.
Hoje suam.
Ou, por último, na constante e pertinaz reflexão da morte, um dos temas mais frequentes de sua obra, que o distingue da maioria dos poetas, com frequência voltados ao prosaísmo das questões ordinárias, pedestres e cotidianas da existência:
Estou esquecendo meus mortos.Já as sílabas dos seus nomessoam surdas aos ouvidosde quem lhes balbucia os ossos.Dentro de mais alguns anosninguém lhes saberá os nomes:inútil retê-los tantospelas pálpebras dos sonhos.(Que, quando abertas, são pássarospousados sobre seus frutos.E, se fechadas, os passosentreabertos no escuro.)Só eu ainda lhes sei os rostosmultiplicados por muitos:depois, quando eu for seus póstumos,apagar-se-ão em segundos.E nunca mais ninguémlhes conhecerá os costumes:de si próprios os apóstolosna eternidade dos túmulos.Estou esquecendo meus mortos:sequer lembrá-los não possoentre a memória do olvidoe a cegueira de meus olhos.
Por todas as razões apontadas aqui, mas sobretudo por ter erigido, com asolidão e obstinação próprias daqueles que sabem que o combustível que alimenta o fogo da poesia é a própria existência e a vida, Nauro Machado será sempre um desafio àqueles que pretendem a expressão em verso. Sua poesia ergue-se na linha do horizonte da história literária brasileira (e do próprio idioma) como um daqueles raros e espantosos casos de verdadeiro e pungente talento poético e artístico, daqueles indivíduos que talvez já nasçam assinalados com o temperamento do artista e o estigma do verbo (sem que aqui caiamos na tese sem crédito do demiurgo), e que deixaram para trás, como Kaváfis ou Emily Dickinson, o testemunho de umaobra que terá, pelos séculos que virão, a despeito do ceticismo, o sinete do gênio.
Referências:
BÉNABOU, M.; ROUBAUD, J. Qu´est-ce que l´OuLiPo? In: __. Pratiquesoulipiennes, Paris: Gallimard, 2004. p.5. (La bibliothèque Gallimard, 147).
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1987
MACHADO, Nauro. Antologia poética. Rio de Janeiro: Editora Imago; Fundação Biblioteca Nacional; Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.
PAES, José Paulo. Poemas da antologia grega ou palatina: séculos VII a. C. a V a. C.São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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