Do teatro de marionetes dos primórdios ao kammerspiel metafísico dos fins últimos
- Luiz Soares Junior
- 12 de nov. de 2024
- 15 min de leitura
Atualizado: 31 de mar.
Por Luiz Soares Júnior
“O erotismo é uma cerimônia suntuosa numa passagem subterrânea”André Breton, Dicionário abreviado do surrealismo
“O teatro não deve privar-se de nenhuma das feitiçarias do teatro”Jean-Paul Sartre
“Disse-lhe ainda o anjo do Senhor: Você está grávida e terá um filho e lhe dará o nome de Ismael, porque o Senhor a ouviu em seu sofrimento. Ele será como um jumento selvagem; sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele”.Gênesis 16
Em um texto mais inspirado do que de hábito pela interlocução desregrada pelos fusos horários e insônia, Serge Daney chamou a atenção de seus leitores para a estreia de Fanny e Alexander (1983) de uma maneira reveladora, classificando-o de folhetim iniciático. Eis uma palavra a ser aprofundada, em se tratando de um filme onde, de forma sintética e sincrética – das figuras, das Cenas e rubricas: o teatro e sua contravenção pela vida, a Lei e sua subversão pelo Desejo, a refração do Pai em figuras e falos vários, do ator canastrão ao pastor calvinista, ambos lívidos de imersão excessivamente stanislaviskiana no personagem; a Mãe ora deliquescente e lacrimosa, ora tão iracunda sob a máscara vincada de trágica da avó que a identificamos com o Pai – , o universo de Bergman é ilustrado de uma forma tão ambivalente que às vezes o confundimos com Fellini, ou o desejamos como um duplo de Fassbinder: elegíaco e grotesco, grotesco e elegíaco, mão dupla e reversível onde a subjetividade reconhece sua dívida para com o theatrum mundi, enquanto este, engalanado por um facho de luz onde se exerce o Abracadabra do acesso mágico ao inanimado (a estátua que se anima sob a luz, no início do filme), advém à Cena polivalente no esplendor de sua potência fascinatória. Fanny e Alexander é este palco, mas também esta coxia, arquibancada, proscênio frontal e generalíssimo de plan tableauprimitivo, médio compungido, meditabundo e inventariante clínico – os detalhes dramático-somáticos da doença do pai e das ententes sexuais entre os membros da família e a criadagem espreitam-nos das quinas dos planos, meio ocultos-meio desvelados, sugerindo uma apropriação, que o filme vai ilustrar num Bildungsroman tormentoso, da latência infantil pelo julgamento adulto, ou do em-si epifânico pelo para-si romanesco; mas segue a ronda de um ritornelo, ora enfeitiçado pela danação ora embriagado pela inocência, e temos ainda outra vez o geral da Casa materna abandonada sob o ciciante das folhas outonais, e finalmente os médios lúbricos e lúdicos do sótão da casa do tio judeu, lugar para uma decisiva metamorfose, onde o menino Alexander experimentará na própria carne o limiar de ser um Outro: sim, chamem-me Ismael. Mas não nos precipitemos; ao folhetim iniciático e seus Abre-te Sésamos cênicos.

Que voz indaga, na hora cálida? Bergman inicia o filme com uma celebração da infância como experiência mediúnica da Cena primeva, titubeio de conhecimento que no final precisaremos raccordar com a Caverna de Revelações do tio Isaac: como o Tamino de Mozart , que através da sequência melódica de suas notas mágicas vai desencantando a Natura do círculo harmônico mas mudo de suas esferas cíclicas e reconduzindo-a, através do engenho humano, à Reconciliação com o Espírito, e, portanto, libertando-a do confinamento amniótico do silêncio, Alexander, em sua ronda pela mansão vazia da avó materna, vai recitando os Nomes queridos que melhor lhe possam guiar neste tateio imberbe de descoberta do mundo; sabemos da importância do Nome para a experiência judaica do ser, e certamente não é por acaso que o arremate dessa experiência cujo clímax vai conduzir o personagem aos cimos vertiginosos da idade adulta, ao final do filme, vai se dar no sótão do amigo judeu de sua avó, sob os auspícios do seu sobrinho Ismael que, à semelhança do filho bíblico de Agar, é a alteridade da alteridade (judaica), uma vez que, assim como no Velho testamento o filho espúrio de Abraão será o encarregado de fecundar o deserto, no filme de Bergman terá por função lançar a semente de um novo adulto Alexander, Aquele que agora conhece e não apenas experiencia o que deseja; o inventário do Nome dos parentes é, para Alexander, a primordial tentativa-erro de integração de seu Ego tatibitate ao Mundo, de aliciamento e abrandamento de suas arestas e zonas de sombra por intercessão da palavra, de que o Nome é o arcano redentor. Em Bergman, a logorreia dos personagens sempre serviu à exteriorização da neurose, à contaminação do mundo pelo ego doentio, mas em Fanny ela é instrumento primordial de Revelação – antes de tudo, de revelação do Invisível pelo ultra-visível do significante falado, e portanto encantado pela enunciação da voz humana, essencialmente materna, lugar de Logos edulcorado pela coloratura lírica do Eterno Feminino. Aqui, muito se fala, como se grita, sussurra, interpela, sugere, ordena, balbucia, mostra como oculta (tantas vezes em um mesmo movimento, que a inflexão distinta alteriza: modus operandis do afeto), mas é determinante que, nesta Summa iniciática onde o sentido de toda a sua obra se condensa, pensemos na linguagem como o meio mágico de conversão da comunicação ‘mediada’ em vidência quase-mística, e no plano de cinema como o circuito desta refração infinita do campo pelo fora de campo (do imaginário, da memória, do dito sibilino da metáfora), como de julgamento do Pai perverso pelo Filho artista, situação que percorre como leitmotif secreto sua obra dedicada à inspeção do desaparecimento do Divino absconditus onipresente, como ao confronto entre a Realpolitik burguesa e as taumaturgias ‘de mafuá’ do sagrado (lembremo-nos de O Rosto (1958), talvez seu filme melhor acabado dos 50, e cujo tema será justamente a contraposição entre o know how institucional e repressor da burguesia esclarecida e a sapiência mistagoga e canastrona da trupe de artistas).
Neste Fanny e Alexander, Abre-te Sésamo transcendental onde temas, Cenas e personagens se reencontram numa primeira e última vez, o acesso à obra de Bergman encontra um formalista paradigma dramático, melo-plástico-dramático de seus percursos-chaves, designando a criação de um supra-barroquismo tardio, onde o novelo volumoso de tantas rotas de fuga se alinhava em um fetichista apego principalmente ao cenário, tantas vezes Floresta Jugendistil do século 19, por onde o menino deve encontrar as senhas e descobrir as rotas a desvelar para enfim se descobrir Outro; o fascínio do filme está antes de tudo neste Limiar onde começa, e ao qual provavelmente não mais retornará, uma vez que o percurso descrito é irreversível, dada natureza arquetípica dos embates ali encenados (sim, o Édipo, mas também Hamlet e a tríade do Esclarecimento formada por Teseu, Jasão e Ulisses, todos empenhados em desterrar sob o Monstro o Sentido, a Alteridade tormentosa sob o Mesmo), destinando Alexander a uma espécie de no man’s land do simbólico: este Limiar é a Casa da Avó, como a cena de abertura, em sua inspeção sismográfica dos espaços vazios e circulares pelo ritornelo da voz de Alexander, indica-nos expressamente; a Mansão da velha atriz é o lugar da turbulência barroca, da vertigem da valsa e dos arpejos metálicos do pianoforte, da coxia repleta de coadjuvantes extenuados, do palco centrífugo e móbil, por onde circulam de forma caleidoscópica os personagens-mor da burguesia endinheirada; o bico-de-pena um tanto frígido de tantos Bergmans aqui, sob a influência do glutão Fellini (a quem Bergman admirava, com reservas) se adensa e colore muito mais, e os personagens do tio fracassado e alcoólatra, do tio lúbrico sob os bigodes em M como um fauno art-nouveau, da avó ainda licenciosa sob a máscara da matrona, das álacres tias que a armadura de ferro do corpete encimam em uma protuberância bojuda de vestais decaídas, da corcunda criada ressentida (Cadela velha!) e da jovial criada manquitola necessitam, pelo escopo e pujança de sua mais-valia barroca (sim, como eram doces os anos de antes de Revolução!), desta heteróclita abundância de bordados, babados, de leques, desta abundância voraz de gestos e suspiros, de precipitações e de titubeios, de corpos arfantes pela exigência do gozo ou pelo infarto iminente, de quadrilhas semicirculares, que a découpage plástica também sabe restituir de maneira anfractuosa, de espocares de champanhe e de peidos, de veemência alcoólica e brejeirice priáprica. Bergman reencontra o barroco de alguns de seus filmes ‘sobre o teatro’ (e a magia ‘reveladora’ da persona que todo grande teatro esposa) dos anos 50, como Sorrisos de uma Noite de Amor (1955), O Rosto (1958), Sonhos de Mulheres (1955), Noites de Circo (1953), mas a Morte do Pai força o fanfarrão barroquismo da infância a ser corrigido pelo tardio desiludido de teatros mais sinistros como O Rito(1969), A Hora do Lobo (1968) e Na Presença de um Palhaço (1997), e finalmente chegamos à Casa do Pastor calvinista, lugar de um classicismo retesado e macilento; sim, de um certo classicismo, que nos deu as funções e os atributos repressores da férula, do cilício, da sotaina, do joelho sobre o milho, como da noção de Verdade como adequatio (explico-me mais adiante); o que é a Verdade, Pilatos respondia a um Cristo um tanto confuso diante de especulação em evidência tão simples? O Pastor, novo Pai (perverso), pergunta por sua vez a Alexander se ele está disposto a “se deixar morrer por Amor à Verdade”? Ora, do que estamos falando? De uma oposição ancestral como os cultos primevos mas ainda acintosamente presente em rituais anímicos, miméticos como a arte; da oposição entre uma Verdade pusilânime talvez, sestrosa e incestuosa (aliciada pela metáfora, pelo anacoluto), escorregadia como a Verdade de Pilatos; de uma verdade de que nós, escritores e artistas tardios (leia-se: suspeitosos de que não há nada senão interpretações, de que o Absoluto consiste em nada senão na acumulação em camadas de versões que o diferem vertiginosamente, de leituras ditadas pelas forças da Economia, do Desejo, etc.) suspeitamos nada encerrar senão um alçapão de significados flutuantes; esta nossa Verdade relativista habita todas as respostas de Alexander, em geral e no particular um grande mitômano; contra esta Verdade, se antepõe a Verdade da frontalidade adstringente e do contracampo diretivo, do raccord teleologicamente orientado, do classicismo mais estrito e funebremente austero, como do fato real transcrito com precisão maciça na sentença linguística; sim, a Verdade do pastor, a Verdade da adequatio metafísica: ser equivale a ser representado, a revelar-se na e pela linguagem, e para que esta operação seja realizada pensemos antes na linguagem matemática do geômetra-filósofo Descartes; uma linguagem, assim, examinemos ainda, não deve deixar lugar para nenhuma ambivalência hermenêutica, pois é o efeito do esquadro e do ângulo reto, o seu produto necessário. Prossigamos, então.

“Você está disposto a se sacrificar pelo amor à Verdade”?, pergunta não por acaso o pastor após uma severa sessão de palmatórias na bunda do menino; ora, como lá ficou dito, Alexander, este mestre de cerimônias demiúrgico e taumaturgo prestidigitador (provavelmente será ator, como a mãe, avó e o pai, aliás um canastrão), antes parece crer na veritas da mentira, pois inventa histórias a fio e a pavio, como se reinventa através desta hermenêutica imaginária que Bergman convoca como o contraponto especular e interiorizado espetacular do teatro de marionetes com que o filme inicia. Alexander não se conforma (como Fanny, espectadora fiel mas muda; em português falaríamos de uma escada privilegiada, ausculta pática do Logos inventivo do irmão encrenqueiro) em ser o papel designado para ele por sua classe, talvez gênero, condição. Vocês talvez se lembrem, e possam assim me ajudar, de uma série de entrevistas redundadas em livro com Bergman feitas pelos Cahiers du Cinéma; em uma delas cujo número sou incapaz de restituir, o mestre sueco recordava que “antes das crianças vinham os cavalos, os cavalariços, toda a família, os galgos de estimação, os domésticos; nós só tínhamos lugar na família ao cabo de todos os outros”. Alexander vive ainda neste mundo assombrado por Dom José I e Maria Teresa da Áustria, mas é um ator nato (coisa de família), e, por esta razão narcisista arrematado, não podendo reduzir seu papel ao de coadjuvante dos revenge camara dramasdos adultos; ele precisa ser integralmente, atuar inequivocamente como o protagonista de sua épica interior, e que melhor rubrica de auto-encenação fantasmagórica nos lega Bergman senão aqueles closes em que, diante de uma Fanny entre apalermada e horrorizada, o menino recita palavrões inomináveis no velório do Pai, diante da Guarda nacional sueca? Alexander, para ser ele-Mesmo, precisa ser um Outro (encenar-se, fantasiar-se, recriar-se), e para perfazer este teatro paranoico de Bildungsroman, Bergman tantas vezes nos esquadrinha o menino-rapaz sob o esquadro entomológico – mas também retrato oval do Teatro juvenil sueco, miscelânea do Shakespeare juvenil do “Sonhos de uma Noite de Verão” e do lumpen arrivista de Strindberg em “Senhorita Júlia” –- do plano americano descritivo; Alexander exige tanta descrição, sendo o autômato subversivo que é, quanto a narrativa de Gesta exige o resto do filme; E do que se trata, afinal, nesta Verdade veritas que se recusa a morrer pelo amor da Verdade adequatio? Desculpem-me, mas preciso de um outro parênteses gênero “boneca russa” para falar da adequatio, o tipo de Verdade representada pelo pastor a que se opõe a fantasista veritas de Alexander.
A Verdade entendida como adequatio é, para a metafísica essencialista que compreendeu o mundo como um conjunto apriorístico de coisas ordenadas segunda a fixidez de uma res cartesiana, aquela em que tudo o que é deve subordinar-se a ser segundo o padrão de uma sentença claramente formulada, a ser nos limites e sob o escansão de uma representação linguística clara e distinta, preferencialmente geométrica e matemática, únicos mediuns de linguagem que não se modificam historicamente, que enclausuram ou mumificam a realidade sob a teia da representação conceitual; eu falo em linguística para nós, escritores tardios, porque a metafísica jamais admitiu a cisão entre o ser e o signo que o representa: o ser do carro passando estava bem apreendido na sentença (de preferência normativa numérica, ideal a ser alcançado mediante o escamoteio do ser-aí, existente) “Eu vi um carro passando”; a linguagem não existia para eles, pelo menos como objeto de interrogação formal, porque a metafísica da Coisa pressupunha como natural que aquilo que é e aquilo que se diz fossem uma mesmíssima coisa, que a res se adequasse perfeita e integralmente à representação que a revelava (e, de novo, penetramos no território, místico-metafísico, da Revelação do ser pela linguagem); ela desconhecia – repito: pelo menos formalmente, como objeto de – a distinção entre a coisa-coisa (vivida, imaginada, desejada) e a coisa pensada, significante de. Este foi seu credo ideológico, aliás: acreditar, ou fazer acreditar, na identificação do existente com o pensado, e o classicismo cinematográfico, com seu idealismo tábula rasa da transparência, nada fez senão estetizar esta coincidência imediata entre o signo e a coisa. E agora vocês hão de se lembrar da frase de um pastor finalmente com legítima má-consciência, quando em Fanny e Alexander fala para a mulher que ele possui uma única máscara, e que, provavelmente, esta cola na sua cara, não? É perto do fim do filme e da reviravolta de valores (ou antes: retomada do Teatro de marionetes doméstico, pois o Pastor agora é um bonequinho objeto de vudu) e de Poder a que somos introduzidos. Percebem? Uma máscara única, que cola na cara, que se integra à cara como se carne e signo fossem um só, verdadeiro pesadelo ideológico, uma vez que nenhuma outra Verdade seria possível depois desta inteiriçada colagem; a unicidade da máscara é esta forçosa identificação entre o significante e o significado (ou entre a linguagem e a coisa que esta designa) sobre a qual se assentou a Verdade metafísica da adequatio, que nada é senão a adequação entre o signo e a coisa que é o objeto de sua elocução, sua integração radical, sem a chance de nova leitura, diferença, rubrica que não a da identificação entre a Coisa e sua manifestação na equação matemática ou conceitual. Em Fanny, especificamente, a locução ‘Eu sou o pai’ deveria não significar meramente para o Filho a sua paternidade ou ascendência genética, mas a própria paternidade manifestando-se na carne gloriosa do signo-nunc. “Eu possuo uma única máscara (o Pai) e esta cola na minha cara como minha palavra na coisa Pai”, eu poderia assim traduzir esta sentenciosa armadilha metafísica que interdita o espaço de qualquer outra inflexão hermenêutica para a coisa Pai, de qualquer outro Pai possível senão aquele que empunha a palmatória e o salmo tremendum: um Pai pastor, ou sacerdote (na palavra de Nietzsche), ao qual incumbe a tripla e reciprocamente implicada função de ser o carrasco, o confessor e o pregador, figuras da Reação e da Repressão; atual encarnação do vilão manipulador Vergerus, presente em tantos Bergmans (de O Rosto a Através de um Espelho (1961), de A Paixão de Anna (1969) a Vergonha (1968) e A Hora do Lobo), este monstro metafísico acredita na unicidade da Máscara, na causalidade estritamente teleológica (ser um Pai é ser necessariamente um confessor e um carrasco, aquele que julga e pune), na submissão da coisa viva à Representação que a embalsama, na petrificação do gesto, na recitação conscienciosa; é o homem do ressentimento, da má-consciência e da má-fé calculista, encarregado de dominar o seu discípulo por intercessão da culpa, expressa cenicamente num pianinho tartuffesco, no versículo iracundo em voz estentórica, da mão soerguida num índex de Dies irae; podemos apreciar o trabalho de corpo do ator Jan Malmsjö como a transposição para a figura humana do inflexível cajado do pastor petista, e em seu gesto hirto ressoam analogias com a pedra tumular do Patriarca; para Bergman, este é um mau teatro, porque possui uma Cena única; monólogo cinzento onde o Mesmo recita a cartilha do Mesmo, e portanto impossibilita à plateia a fruição do Desejo, que só existe no coup de dés lançado pela alteridade, que só pode começar no scherzo dionisíaco nascido da fricção do dueto melodramático e do triângulo ‘comédia de situações’; um bom teatro será sempre múltiplo, reversível e devedor de clins d’oeil para a plateia, enquanto que o Teatro Uno de Vergerus não conhece a possibilidade do jogo de Cena, da coxia e a existência da quarta parede porque não sabe jogar (em inglês e francês fica melhor: to play, jouer) com essa plurivocidade arquitetônica e de Cena do palco italiano. Se a Máscara que porta é única, só lhe resta colar na cara (lembremo-nos das origens teatrais da noção de persona, máscara usada pelos gregos para amplificar a voz na arquibancada teatral, e de que Bergman fará um uso quase literal ao contrapor, no filme de 1966, a atriz muda e a enfermeira logorreica), encarniçar-se e inteiriçar-se sob esta borracha rugosa de látex que o Monstro (do Mesmo, do monólogo endógeno, da reiteração do único fá) elegeu como mansarda para sua peregrinação entrópica em direção a si mesmo; e a Verdade de Alexander, que se lhe antepõe singularmente?
Esta seria antes da ordem jurídico-hermenêutica da veritas, e não, como a do padrasto, da filosófica totalitarista da adequatio; a veritas romana foi o lugar onde se coligiram as rubricas de uma Cena copiosa, eclética, de uma mais-valia estridente da Máscara, de uma exuberância candente do Gesto, da Rubrica Infinita de uma jam session dramática, beat polifônico de encantamento do Logos pela versão; o palco privilegiado foram os processos jurídicos, mas este teatro, de onde o mundo romano retirou um paradigma de Enunciação glorioso (a princípio fático, mas um quid facti rigorosamente submetido ao círculo virtuoso da hermenêutica, portanto poroso às inflexões dos atores e à troca de posições no tablado do palco), também conheceu a domesticidade dos porões onde criadas e patrões se conheciam biblicamente, como os lautos banquetes de comemoração familiar e de negócios, as cerimônias suntuosas de luto e da renovação da vida; este é o teatro dos Ekdhal; libidinoso, jovial, eminentemente lúdico, cheio de piscadelas para a plateia e de coxias superpostas ao proscênio luminoso, este teatro conhece a profundidade de campo e do fora de campo da vida como nossas oportunidades de blefe, de abundância de cartadas e de cartolas, e é este know how de Jogo que permite a Alexander escapar da ‘máscara única, que cola na cara’, do pastor Vergerus. Nietzsche falava numa carta a Andreas Salomé que quem mente conhece muito mais profundamente a Verdade, porque sabe porque mente, enquanto que a Verdade entendida como adequação se contenta em transcrever no domínio linguístico o fato verificado (a sentença “Um carro passou” re-apresenta mimeticamente o evento da passagem do carro); a transparência clássica, credora deste tipo de Verdade limitada ao evento fático expresso na legibilidade de evidência matemática do conceito, está do lado do pastor, e é na mise en scène de ângulos retos e agudos e frontalidade adstringente de sua Casa que Bergman nos leva a experienciar o seu aguilhão; o classicismo aqui é denunciado como a arte ou forma de representação idealista onde o ser foi cooptado pelo conceito, e tudo o que podemos fruir dele se esgota nestas linhas inflexíveis onde por analogia estudamos os teoremas da Razão humana, mas não podemos propriamente nada sentir, pois somos afetados unicamente pelo demonstrandum de um Logos totalitário.É preciso então saber raccordar o barroquismo da festa de Natal com que o filme se abre com a caverna atulhada de quinquilharias do falso tio judeu, ao final, e ver que são verso e reverso de uma Mesma experiência mágica da infância como o lugar da cartada múltipla, do Jogo infinito, do blefe onipresente; no limiar da adolescência, no sótão com o sobrinho Ismael (que o acolhe com uma intimidade de amante, mas também de arcanjo guardião suspeitoso), Alexander experiencia um ‘terror e tremor’ reverente diante daquela oferta de Sagrado propiciada pelo abraço cálido de Ismael: matar o Pai, ou seu ersatz perverso na figura do Pastor, e assim satisfazer o élan parricida e regicida que está na raiz da fantasia edipiana: fundar, ao lado da Mãe, uma nova posteridade a partir do sequestro da autoridade de Deus, Pai supremo; Deus aqui já lhe aparecera um instante antes, marionete monstruosamente desengonçada que, do alto de seus trovões de cartolina estridente, guinchos de prego e cola e talos de braços balouçantes sob o serpenteio do crepom, pensara apavorá-lo: um truque barato de teatro é tudo o que restara de sua Onipotência fálica, e nisto Bergman é um cineasta tardio, que não mais identifica a palavra com a coisa (como o pastor Vergerus), pois sabe que as coisas são feitas de celofane, madeira e cola, podendo portanto converter-se infinitamente em novas coisas, signos-coisas iridescentes de pulsão libidinal. É isso o que Alexander também conhece aqui, e com Ismael a um passo do conhecimento sexual bíblico: a possibilidade de que esta coisa-Alexander possa substituir-se à coisa Deus, e liquidá-lo; a ideia central do passe de mágica sinistro efetivado aqui é que já não mais habitamos um universo coisificado metafísico, ou então experienciamos uma nova , pré-ou-pós metafísica: um mundo não mais gerado e gestado por res imutavelmente estáveis, mas flutuantes, claudicantes, possíveis, ‘uma mesma e outra coisa’; aqui é possível que Deus seja apenas este totem Liberty de desmesurada boca pintada e olhos de nanquim, e que o menino Alexander, tão débil do fundo de seus negros olhos famélicos, possa enfim dar o golpe fatal e devorá-lo; a profundidade de campo de onde, ao som de uma sonata de Bach, emerge o convulso corpo incendiado da tia felliniana é um dos grandes momentos do cinema demoníaco; brincar pode afinal ser algo fatal, sobretudo se tomados pela mão do filho da puta que Deus abandonou no deserto para centrar a posteridade de Abraão em Isaac, o filho oficial; a Ismael, talvez por compensação, foram dados os prodígios de vidência e recriação taumatúrgica do mundo com que só os grandes criadores (e as crianças mentirosas) foram dotados: este jovem heresiarca é portanto o padroeiro da arte, brincadeira seríssima que só não queima aqueles que consentem em entrar na roda e passar o anel.
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