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Escrever em lentes grisalhas: notas sobre a estética de Béla Tarr

Atualizado: 31 de mar.

E todos os tons de cinza da

paisagem derivavam dessa única cor. Essa

cor que nossa paisagem toma às vezes no

anoitecer nublado de verão impregnado de

longas chuvas; é a mesma abnegação

profunda e tranquila, a mesma dormência

resignada e definitiva, que não precisa mais

do consolo da cor.


Bruno Schulz


I


Bom, não é vergonha alguma dizer que minha inquietação em aceitar escrever algo acerca do cinema de Béla Tarr é tripla, quadrupla ou ainda mais. Estar num regime de internação quase inteiramente debilitado é uma dessas inquietações, escrever algo minimamente competente, conjuntamente ao excelente pessoal que tem contribuído para Revista Lume Scope, e fazer jus ao convite de um dos nossos maiores cineastas em atividade, Frederico Machado, é outra, no entanto, a inquietação que mais me desassossega é a de repetir o que os especialistas e teóricos do cinema – o que nem de longe sou – já disseram, e de modo muito mais competente do que poderia dizê-lo, à exaustão.


É por isso que escolho, então, a difícil alameda do ensaio, caminho que remete a Válery, Degas e Schubert – cada qual a seu modo e em sua arte, seja na escrita, na pintura, nos impromptus – mas também à Simone Weil e Barthes. O ensaio, essa via que fracassa de antemão por não poder, nunca, esgotar seu objeto de análise, já que não há, propriamente falando, um objeto a ser analisado, uma tese a ser ferrenhamente defendida ou um ponto de chegada definido. E foi assim, pelo fracasso do ensaio, que criei especial carinho por Paul Válery, quando descobri sua obsessão interminável por desenhar mãos, carinho, ou melhor dizendo, ternura, que ressoa a Edvar Degas e sua insistência em pintar bailarinas em pleno ensaio, momento íntimo, antecâmara que deve ser ocultada a qualquer custo do atento olhar do espectador – antes da body art, do happining e todas as outras as formas modernas e contemporâneas de artes do improviso que trouxeram o antes e o durante para diante dos olhos, até então, ingênuos, daquele que esperava a obra já pronta. Ensaiar é começar pelo meio, como a figura que Benjamin traçou acerca da criança descobrindo, de modo já começado, a linguagem como um objeto: peça tátil e estranha, por isso desmonta-se, brinca-se, e, o mais importante, experimenta-se o diferente, a outridade do outro, sem necessariamente, arrastá-lo para nossa violenta razão identificadora; é assim que a criança benjaminiana ensina-nos que não é de todo mal demorar-se no negativo, pode-se apaziguar algo do pensar afetivo no experienciar do estético. Apesar do pouco rigor analítico, stricto senso, nem por isso abrirei mão de lançar certa estranheza, incomoda, confesso, no que se tornou comum ao se falar da estética composicional do universo que monta imageticamente o cinema de Tarr: como o tempo, a lentidão dos planos sequência, o suposto “realismo” como mímesis do cotidiano, a relação com a literatura, entre outros aspectos da obra do cineasta húngaro.





II


A primeira vez que assisti Béla Tarr, Satántángo (1994) – livro homônimo de László Krasznahorkai, de 1985, com não mais de 300 páginas –, ainda acreditava em algo impossível como a “adaptação” (como se dois regimes materiais com processos de conhecimentos imanentes às suas criações de imagens-pensamento pudessem se instaurar num regime de imitatio, ou mímesis, para além da nossa credulidade na lógica da identidade, ainda que aos farrapos e, nesse caso, completamente ilógica) segui com a impressão dos planos lentos, das partes sem cortes como o tempo de fato é (como haviam me dito e me “preparado” para o cinema de Tarr), já na segunda e na terceira vez, um estranhamento se sobrepôs à lentidão dos planos: diferentemente do livro, desenhado em ekphrasis, em parágrafos que montam e remontam a trama de uma desolada vila húngara campestre em vias de desaparecer, como numa momentânea suspensão temporal imposta pelo esboroar do regime comunista nos anos 90, em que, num nítido ressoar de Macbeath e Hamlet, crimes, traições, perfídias, lama e melancolia, mostram nossos lados mais atrozes, tenuamente presos pelas leis punitivas que nos impedem de tragar-nos uns aos outros, Tarr se prendia à ângulos insólitos, seja como o da janela, o do urinol, ou em cenas absolutamente banais, infiltrando- se no suposto realismo político para descrever não o político da situação, mas sim a descrição da descrição, o banal ainda mais banal da situação, ao ponto das botas, das vacas, das cadeiras e do rés do chão ganharem tamanha proporção em relação à trama que o preto e branco apenas rebaixa, ainda mais, essa falta de poeticidade.


Minha desconfiança quanto ao suposto “realismo” se detém materialmente nas escolhas angulares, nas imagens, nas janelas, na precisão das luzes e sombras, na maestria da composição atmosférica, mas não só na estética, há um outro substrato – e nesse, perdoem-me a pouca complacência com os artistas, o que eles dizem ou deixam de dizer acerca da própria obra dificilmente me chegam aos ouvidos – o realismo político como possibilidade da representação do povo tal qual ele é ou foi ou deveria ser: aquele bem conhecido discurso voltado a qualquer coisa como uma nação Húngara, que me remete aos escritos etnomusicais de Béla Bartók que estudei ao longo de 2014, ou ao nosso Villa-Lobos ou Mário de Andrade no Brasil das décadas de 20 e 30, nunca me convenceram muito nessa busca por uma essência nacional que integrasse numa unidade varrendo para debaixo do tapete o que não se encaixasse muito bem ao “projeto nacional”.


Assim como o Quarteto para cordas No. 4 in C maior, op. 91, BB 95, escrito em 1928, por Béla Bartók, jamais poderia ser tachado por “realista”, já que tem por inúmeros trechos e, até mesmo, frases inteiras de temas retirados de seus trabalhos etnomusicológicos juntos a Zoltán Kodály nos campos da Hungria e Romênia, na coleta de canções populares centenárias, que, no entanto, assim como para Shostakovich, Camargo Guarnieri e Darius Milhaud, por exemplo, servem apenas de mote para complexa instauração da imagem- pensamento da música dissonante que não se enquadrará à Segunda Escola de Viena. Béla Tarr, a meu ver, está no mesmo caminho: o que importa, de fato, não é se ele filme ou não os campos da Hungria, seu “povo”, sua “nação”, mas como, de que modo essa filmagem acontece, qual a composição da estética que esse povo como imagem se transcreve no universo de Tarr.


Béla Tarr, por sua vez, inverte a ekphrasis – como numa afasia da descrição, que se dá não na simples realidade dada, mostrada e descrita, mas em seu dispêndio, no mesmo sentido de Bataille, em seu exagero monocromático a qual voltaremos no texto – nos dando a ver o que a literatura, por sua própria condição material, nos instiga ao tentar ver no limite mesmo de sua condição inescapável como fracasso de sua não participação do regime das artes do visível, insistindo no caráter tátil do lamaçal úmido e, a um só tempo árido, do outono campestre, tocando num ponto em que nem literatura nem cinema pode nos proporcionar: o tato.





III


É na materialidade desse sentido, do tato, que o cinema na “adaptação” – conceito que deve ser rapidamente revisto por seu caráter, no mínimo, frágil – do romance Sátantangó, na impossibilidade de se materializarem no outono que ambos descrevem enfaticamente, dando à lama o peso do signo disjuntivo que contém virtualmente toda a trama que virar a seguir, como as vacas chafurdando sem rumo nessa mesma terra deixada a Deus dará. É curioso como, além da escolha do preto e branco acompanhando a magreza da letra sob o papel, o que não apenas reduz drasticamente o material sensível disponível ao cineasta, como os ângulos escolhidos para as imagens – muito mais próximos de Sokurov, nesse caso, do que de Tarkovski – enfrentam juntamente à literatura e outras artes, sua maior impossibilidade: o toque, seja em A Londoni Férfi (2007) em que, no plano sequência, em que sabemos sem saber, quase suspensos, que um assassinato acontece num casebre à beira mar, e, enquanto o suposto crime sucede, observamos calmamente a porta do local ao tranquilo som do mar em ressaca junto ao vento da maresia matutina, numa trágica e sublime reescrita da novela policial de Simenon, através das lentes de seu cinema, ou em Kárhozat (1987) em que os tempos de Kairós e Aión se tocam ao ponto de configurar uma pele do que não se toca, uma superfície de tempo, como um corpo fabulado, desenhado e arquitetado por um incorporal, no sentido de Crisipo e dos antigos estóicos – recuperados na brilhante tese de Émil Brehier, historiador da filosofia, infelizmente, pouco visitado – em que Kairós, o tempo do “momento oportuno”, se encontra com Aión, esse não-tempo, ou, ainda, esse tempo sempre em devir, materialmente tecido na imagem-gesto que Tarr concebe na quase acinesia das figuras que fazem micromovimentos dentro do bar numa cinesia da música pulsando na cena e nos ângulos que percorrem a voz e a face da cantora no titanik bar, enleando e criando uma atmosfera, uma pele de tempo, como dito acima, que não pode ser definida como lenta ou rápida, mas sim num compassar absolutamente singular: Tarr fabula tecidos de tempos que são próprios à estética de sua composição cinematográfica, inexistentes antes de seus filmes, criados a partir deles, por isso não cabem dentro de conceitos genéricos como “planos lentos”.





IV


A lentidão de Sátantangó corresponde não a uma lentidão propriamente dita, mas sim a uma pequena revolta, como um dos filhos que escapa a Krónos no terrível quadro de Goya, esse Deus que não aceita sucessor que lhe altere a ordenação sucessiva do tempo cronológico. O plano cinematográfico de Tarr, arriscaria dizê-lo, não é contínuo, pelo contrário, é a descontinuidade que não para de insistir num acontecimento oportuno, mas não o acontecimento como ruptura da imagem-ação, da imagem-ato, e sim na imagem-ruptura do próprio banal como banal, não uma simplicidade demonstrativa ou pedagógica do que se é, mostrar ou dar a ver, quase crédu-lo no só-ser-o-vísível, pelo contrário, não há tensão ou distensão pois a atmosfera não aguarda rupturas cronológicas, marcos ou datas políticas para além da simples aparência e importância que nós mesmos lhe banhamos – como nas Atmosphéres de um conterrâneo seu, o compositor György Sándor Ligeti – há outro regime de tempo em jogo: um Kairós, o tempo grego para o acontecimento, o “momento oportuno” – no sentido de “tempo oportuno"; como entender Agamben a partir da leitura do Apóstolo Paulo, o tempo do acontecimento (não da ação), rompendo incisivamente a ruptura pela ruptura e não simplesmente abdicando dela. Em Tarr todos os momentos são oportunos porque nenhum o é em específico, cada imagem, tomada, fala e ângulo se torna cinema por não poder não o sê-lo – nesse aspecto, a estética de Tarr está longe de ser “poética” se a entendermos no sentido de Tarkovsky – como a democratização do literário foi radicalmente empreendido por Flaubert, Machado de Assis e, em artes plásticas, por Monet, Toulouse e Victor Horta. Não há em Tarr a procura pelo cinema pois a estética cinematográfica é inteiramente saída, de antemão, como cinema, no sentido de extrair o que há de “cinematográfico” desde o mais banal, seguindo a lente a lente cinematográfica flaubertiana – criticado por Proust, justamente, por não saber compor “belas imagens”, no sentido de isola-las – percorrendo desde o rés-do-chão, despreocupado quanto às imagens e gestos poéticos que irrompem, ora o ou outra, à revelia do próprio cineasta, escapam dele, ao contrário de Tarkovski, que são obcecadamente procuradas, versificadas em cada imagem, compostas em cada parede, em cada conjunção, é a diferença entre James Joyce e Herman Broch, ambos são pura literatura, mas há certo prosaísmo que derrama de Joyce, em Broch não, seu monólogo interno é o de um poeta, e ninguém menos que Virgílio à beira da morte.





V


Há ainda por se fazer – teoricamente no campo da estética, radicalizando um aspecto mais material e de autonomia das artes enquanto regimes de pensamentos através de criações de imagens afetivas – por meio de indícios dados por Luc Nancy, Deleuze, Adorno Blanchot e outros, uma tese de que a arte, em seus diferentes regimes materiais, tem por contato sua própria diferença constitutiva, ou seja, o que aproxima a literatura do cinema é a impossibilidade de que a primeira, por exemplo, de dar a ver imagens visíveis (não importando o quão precisa seja a descrição da epkfrasis, a literatura continua cega).


O suposto "realismo" de Béla Tarr, defendido por Rancière e por parte relevante dos estudiosos do cineasta húngaro, caem na ingenuidade do olhar que captura ou busca só o que se é de fato, quando a lente de Tarr se desloca, novamente, num tempo do acontecimento que não para de acontecer: a descrição narrativa da imagem visual, como se o olhar de Tarr só busca aquilo que é de fato, existindo enquanto ente, coisa. Essa descrição narrativa na imagem visual, em Tarr, já se caracteriza na radicalidade que o cineasta húngaro assume com o preto er branco, não como, novamente, uma continuidade, mas uma ininterrupta ruptura com o tempo imanente às cores, estabelecendo uma conexão material com o regime cinematográfico e a literatura: a letra negra inscrita no papel em branco do livro. Penso que, mais do que um simples acirramento da atmosfera melancólica, Tarr, juntamente com a composição de Mihály Vig (desde sua virada estética), faz das imagens, quase inamovíveis, uma sintaxe dessa descrição que se dá como diferença da escritura, na visibilidade. Acredito que o cinema de Tarr, por se inscrever num Kairós, rompe com o símbolo, com a metáfora e com a metonímia. A estética que Tarr esculpe está nesse roçar com a literatura, no dobrar da impossibilidade material de sê-la – nenhuma adaptação é uma adaptação de fato - que o leva a pensar, ainda mais, de modo cinematográfico. Penso que, no caso de Satantango, o romance de László Krasznahorkai é intensamente desenhado pela ekphrasis de sua escritura numa tonalidade poética - quer dar a ver a singularidade do mundo - enquanto Tarr, ao avesso, expõe, "descrevendo" na lente em que inscreve e segura a pele do plano sequência, numa quase afasia da comunicação mumificada pelo modelo teleológico da trama explicativa.


Teoricamente, tenho pensado isso numa teoria estética ainda aos fragmentos: o fracasso (no sentido de Blanchot) de que a literatura não seja mais do que sua pobre grafia magra, seu conjunto de enunciados comunicativos, no contato com o a impossibilidade material de ser algo que só a outra arte pode materialmente ser, leva a escritura a não parar de esculpir os

supostos limites de sua própria imanência – e isso também serve de lá para cá, por exemplo, a tentativa do cinema em ser literatura – delineando imagens afetivas em contato com o Fora, o ainda não da arte em devir. Um exemplo: quanto menos ouvimos a sonata de Vinteuil em Proust, mais dela o escritor escreve, tecendo uma música muda inscrita na imagem da literatura como gesto. Os impressionistas também são nítidos nesse tom: quanto menos podem captar o movimento, mais se aprofundam nele. Beckett com o silêncio, Giacometti com a ausência e, também, Tarkovski com a poesia. Num primeiro momento Tarr parece, de fato, absolutamente identificável à poièsis da compassada composição das imagens de Tarkovsky. No entanto, se deixarmos que o olhar passeie na contemplação dos planos, sem, contudo, deixa-lose curvar e tocar, desde nosso íntimo, esse outro olhar cego do pensamento, puro movimento que se infiltra no sentido (não no significado) do que se olha, afinando-nos ao gestos afetivos que se delineiam nas imagens

que, como nós, nos contemplam de soslaio, num olhar-olhado – como diria Didi-Huberman, ou, ainda mais, certo olhar que salta afundando-nos na vibração das imagens cinematográficas que não param de deslizar de nós delas mesmas, compondo relevos e espaços intensos, Tarr se transforma, então, num longo cineasta-romancista, como Tarkovski é um cineasta poeta, pois suas imagens vão se alongando num prosaísmo em preto e branco, numa descrição que não pode descrever, numa narrativa que se encontra no nó mesmo, no empecilho mesmo de só poder mostrar sendo a ekphrasis que o romance, o conto e os regimes da escrita jamais podem levar a cabo, o jogo do chiaroscuro elaborado por Tarr o aproxima ainda mais do literário: sabendo que o cinema dá a ver a ekphrasis toda que o visível é, Tarr modula os ângulos, atrapalha a visão, obscurece os rostos, parcializa corpos, jogando contra a própria visibilidade limpa, torcendo-a, tornando-a opaca, como numa trama romanesca.





VI


Ao fabular atmosferas, Béla Tarr é como o cineasta de uma era, artista que concebe um cosmos em seu tear cinematográfico, em que a letra transcreve a lente e a imagem esculpe o tempo.


1- A querida Lídia Mello, grande especialista em Béla Tarr, com tese defendida recentemente sobre o autor, pede ajuda para o pessoal para publicação sobre um livro de estética sobre o cineasta, segue o link:

https://www.catarse.me/livro_o_cinema_de_bela_tarr_82f4?ref=faceboo k&utm_source=facebook.com&utm_medium=social&utm_campaign=proj

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Caio Russo

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