Depois da Farsa, um ensaio sobre o filme
- Frederico Machado
- 18 de out. de 2023
- 9 min de leitura
Atualizado: 3 de mai. de 2024
No inicio do ano de 2017 recebi um telefonema do cineasta Frederico Machado. Sem proselitismo em seu texto e bastante objetivo ele fez o convite para uma parceria em relação a construção de um filme cujo conteúdo estivesse em consonância com as questões políticas. Logo aceitei e logo, também, mais dois realizadores se juntaram ao projeto, Cristiano Burlan e Dellani Lima. Diante disso, discutimos sobre a questão de um Filme Político. Não se tratava, desde então, de tomar a macro política e as discussões de balcão que naquele exato momento alastrava o cenário midiático num terrível dualismo entre bem e mal, direita e esquerda, herói e vilão, certo ou errado. Naturalmente que havia e existe neste grupo de cineastas proximidades e legitimações quanto aos lados, no entanto, o debate deveria acontecer no dado da experimentação onde não houvesse limites, mas fronteiras, ou melhor, fronteira como elemento que se põe no espaço enquanto lugar que pede passagens. Taís passagens remetem a devires, fugas, buscas em tons que a ficção e/ou o registro de imagens documentais se prestassem ao caos político do cenário nacional como elemento de contestação ao status quo vigente. Estávamos desalojados ante um clima desproporcional ao estado de direito, ou seja, questões extremamente estranhas estavam sendo tomadas no âmbito jurídico além de outras formas de manejo político/econômico do nosso país por vias da indiferença a conquistas e garantias constitucionais. Diante disso, cada realizador deveria construir o seu material e depois disso discutir em grupo a estruturação da película. Assim, espalhados em quatro regiões do país, São Paulo, Maranhão, Pernambuco e Paraíba, Burlan, Dellani, Frederico e Valério se manifestaram tomando enquanto disparador o inconformismo e o desejo como elemento estruturante para compor as suas histórias.
Em São Paulo o cineasta Cristiano Burlan fez rapidamente uma incursão em um material cedido pela cinemateca suíça. Registros diversos de homens trabalhando em indústrias, o cotidiano das cidades e o registro de pessoas comuns formaram a seara junto a materiais sonoros trazidos do âmago do jornalismo no período da ditadura que denunciavam as manobras politico militares na década de sessenta do século passado. A estruturação da montagem de Burlan e as escolhas dos áudios concebeu uma obra prima que emana força e contradições numa narrativa que nos causa a presentificação dos acontecimentos ainda hoje sendo revisitado para o estado atual como antevisão do futuro. Foi justamente o trabalho de Burlan que possibilitou posteriormente para o montador Cesar Pinheiro a costura, espinha dorsal, do filme como um todo. Trata-se, portanto, de um leitimotiv burlaniano o esteio para o lance de dados do filme Depois da Farsa.

Mas, por que Depois da Farsa? Poderíamos questionar diante de um tom marxista ou mesmo através da lupa de Slavo Zizek outro titulo: Primeiro como tragédia depois como farsa. Mas, no diminutivo do nosso tempo e diante dos apuros que ora se imputa ao nosso estado de direito a farsa tá em curso, ou melhor, quando pior, estamos no movimento contemporâneo da perversão em que o semblante é morada dos convivas na ceia neoliberal cujo prato somos nós e estamos sendo servidos e a conta é paga pela classe média que é muito pobre para ser rica, ou, rica demais para ser pobre. A construção do cineasta cristiano Burlan para filme em questão foi uma contribuição de um autor preocupado com o nosso tempo e já vitimizado pelas atrocidades da violência e do crime cujo desvelo rendeu filmes que se manifestam em tom realista e alegórico à condição humana e a própria narrativa existencial e familiar de Burlan.
Quanto ao paraibano, radicado em Belo Horizonte, e residente em São Paulo na atualidade, Dellani Lima, ele trouxe o conflito posto de um homem que encarna a desesperança, nilismo e uma certa ironia em seu estado de desempregado. Infurnado sempre em seu apartamento o personagem é o que hoje se denomina de desalentado, ou seja, alguém que não têm mais forças para procurar emprego e resolve se fechar sobre si mesmo numa espécie de ensimesmamento a-poético e perigoso visto que a janela do seu apartamento passa a ser o refúgio de um voyerista que acena para o exterior filmando o que se passa na rua que ferve em protestos e reivindicações apontando para um destino de perda cada vez maior de empoderamento da classe trabalhadora bem como outros direitos básicos das pessoas. Nosso personagem devia estar na rua, mas resolveu ficar deabulando sobre a própria condição e adoecendo com divagações sobre a miséria humana mais parecendo um personagem de Doistoevsky.

Ainda, o cineasta Dellani Lima ao mesmo tempo consegue nos entreter com doses irônicas quando um empresário/empregador vai visitar o demitido e o diálogo nos põe em sintonia com o escárnio. Ali se apresenta já a farsa como peça detentora do seu estatuto de desgraça que segue escarafunchando a bandeira nacional e nomeando a já contraditória “Ordem e Progreso” como “Farsa e Tragédia”. Remetendo ao caráter plástico das imagens de Dellani Lima, o espaço fechado e a luz que incide nos personagens entre luz e sombras consegue capturar o clima de derrocada em que se mete o nosso personagem dostoievskiano, ou seja, ele não quer sair de onde está preferindo o frio e o ressentimento ou a quase pouca reação a uma visita de uma linda mulher que se mostra como interlocutora e de ação quanto a baixa auto estima do amigo.
Em São Luís do Maranhão o cineasta Frederico Machado é a estrela que brilha numa poética entre Eros e Thanatos. Nascimento e Morte se põe num dualismo ante a Alegria e sua manifestação nos ritos e paragens da musicalidade do Boi e as suas manifestações folclóricas e dançantes tão presentes na cultura maranhense. Mas, algo sempre parece acompanhar e deixar em suspensão os personagens que convivem juntos e separados num casarão meio abandonado em São Luís. Olhares desconfiados, uma mulher em trabalho de parto que se contorce sozinha entre dores e aflições prepara o filme para o futuro de paixões tristes. O cineasta Frederico cujo prenome Machado atua enquanto significante da foice que ceifa os vivos, Thanatos, emerge na película anunciando que os ventos e as vozes que sopram para o futuro não é nada acalentador. O filho que nasce é a metáfora de algo que no semblante do pai expõe o monstro e logo os tambores param de rufar e o silêncio mobiliza questionamentos cujos dados são questionáveis.
Por fim, trago três peças fílmicas com o núcleo de atores paraibanos e pernambucanos os quais são atravessados em dois espaços distintos que confluem para o último, seara em que preparam algo que não pode ser lido pelo imaginário do senso comum tal como se manifesta, mas por aquilo que a pólvora pode trazer enquanto metáfora ante a farsa que se avizinha diante de todos nós e a tragédia que se anuncia para muito além da película. Destaca-se, também, o conflito entre duas mulheres manifestado pela opressão que se revela por uma atitude racista e preconceituosa colocando ímpeto à personagem oprimida para regir: “com este povo não tem conversa não; têm que ser é no braço”. São núcleos explosivos, tristes, mas que se organizam para a ação e os personagens vão a luta por isso.
Depois de cada cineasta preparar a sua parte e sem que buscassemos uma gestalt, ou seja, o todo maior que as partes, entregamos o filme ao montador Cesar Florêncio. O filme Pingo D’água foi a obra que disparou o conceito para a montagem. Assim, uma imagem/ação do filme de Frederico Machado se tornou emblemática assim como a espinha dorsal burlaniana do seu fator histórico. No material do maranhanse havia um personagem que sentado manipulava peças de dominó tirando da frição deles algum som. Dados que se conjugam num sem termos de previsibilidades, mas de jogatinas. De certa forma, longe agora do filme e de cara com a nossa realidade social do nosso país, o Brasil hoje é um laboratório do neoliberalismo mundial. Paraíso dos rentistas e especuladores. Aqui os bancos mandam e a população adormecida ou mesmo silenciada assiste perplexa e conivente à farsa consolidada por violações de direitos e um estado que deseja ser mínimo deixando a maioria, senão trabalhadores e a população, silenciada. Voltando ao filme, tínhamos o rizoma como fluxo que deriva da não linearidade e da descontinuidade que anda fora da linha reta. O rizoma nos permite contar uma história fractal. Histórias que não sabemos como começa nem como termina. Elas já aconteceram, vão acontecer ou já estão acontecendo. Assim sendo, não buscamos reproduzir ou expor o caos político que se alastrava no país na época, 2016/2017, mas de quão infindável é a história em seu fluxo de narrar os acontecimentos e de esconder pela via das classes dominates o que há por trás das narrativas. Na verdade, a classe dominante não expõe a história, mas a historiografia dos fatos que ela legitimou como queira.
No filme Depois da Farsa as vozes são tonalidades diferentes mas quando misturadas são forças aglutinadoras de um caos manifesto. De forma rizomática as diferenças são forças por serem diferentes, pois, quando juntas elas se mostram vitais como arma que se manifesta por imagens conjurando a historiografia da classe dominante ao impasse, expondo o povo como a real força capaz de fazer a roda da fortuna girar quando esse povo vai a luta ou a roda do infortúnio acontecer quando silenciam. Mas, no filme, o acontecido acontece novamente, o infortúnio acontecido volta a acontecer, e o que está acontecendo é imprevisivel quanto ao que ainda podemos fazer para mudar a história, ou pelo menos, agir sobre a farsa evitando uma tragédia sem precedentes em nosso território nacional.
Depois da Farsa não é um filme em que cineastas se encontram simplesmente para a realização de uma película com pretensão panfletária. Toda consciência é consciência de algo, como nos diz o filósofo Husserl, ou seja, há sempre intencionalidade em nossas ações no mundo. Destarte, quando somos impelidos a escrever um filme tal como foi escrito e quando as nossas ações sofrem os intempestivos ventos do seu tempo o resultado soma-se a conivência com esses ventos ou o repúdio a todos eles. Vivo no interior de Pernambuco, morei sempre nos interiores: Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará. Os grandes centros, capitais, estão pertos de mim seja pela minha captura em tons intelectuais ou geográficos onde me movo quando quero e permaneço quando necessito. Sei que diferença faz um médico na periferia, na zona rural, ou, quão diferença fez e faz transportes, professores e universidades no interior. Não há como se calar quando os ventos começam a impelir o povo a um tipo de subserviência intelectual e até mesmo físico. O que há por trás desses ventos que sopram travestidos de uniforme que visa a combater ideologias e propagar um estado supostamente mínimo é o processo contínuo de colonização e seus signos hetenormativos, brancos e dominantes. Isso nunca deixou de existir, mas agora a fauna e o habitat se revela em fluxo constante misturando os lados de um estado nem completamente bélico, nem completamente judicializado, nem completamente democrático e nem completamente cristão, mas criando a impressão de não ser bélico, judicializado, fundamentalista cristão, discriminatório e racista. A farsa da classe dominante é agir sobre o tempo criando narrativas volver, ou seja, dando a todos narrativas incertas sobre o acontecido, agindo sobre o futuro enquanto expectativa de uma nova ordem nacional e deixando todos à deriva pois o presente e somente o presente é o palco da grande enganação cujos personagens são ressentidos, pois não aguentam de maneira alguma olhar cara a cara para o povo. Não é a toa que as redes sociais fizeram a diferença nas eleições de 2018 e os debates e relações com a população foram diluídos em narrativas estranhas e ficcionais. Estamos a mercê de uma narrativa mentirosa do nosso tempo e que alimenta vorazmente gerações em sua atualidade. É responsabilidade, também, nossa conclamar os outros à discussão e ao debate visto que o imperativo que deve cercar o convívio a partir de agora já foi posto enquanto teaser a partir de 2014, ou seja, diante do Estado Volver estaremos convivendo com o limite e não com a fronteira. O Limite é a condição onipresente do estado bélico e capital judicializado por axiomas que criminalizam antes de investigar, averiguam para persuadir e prendem para constranger. A fronteira é o espaço da micropolítica, veias abertas e vasos comunicantes, cujo tempo circunscreve pela imanência e os afetos são vividos por intensidades nômades deslocados pela liberdade de criar novas relações em experiências extemporâneas.
Depois da Farsa é um filme que dessacraliza o tempo como metáfora da ordem e do progresso em nosso território nacional. Infelizmente a ordem vem sendo exercida sobre os afetos e corpos de subjetividades subjugadas em nossa sociedade e o progresso é impedido quando há possibilidades de florescimento dos menos abastados. Quando os personagens na película se juntam para exercer algum tipo de protagonismo na última parte da narrativa é porque eles, digamos, assistiram a si mesmos e aos outros do inicio ao fim do filme. Não suportam mais o que foi exposto. É muita cara de pau o acontecido voltar a acontecer novamente no Brasil. Querem sair do filme. Tramam algo. Sabem que a chama somente se mantém acesa se houver fogo. Mas, o fogo que se põe não deve ser o que a extrema direita quer para legitimar o estado bélico e judicializado em curso: terrorismo.
No filme, a explosão é metáfora, escrutínio para a mudança, explosão que faz o cenário se transformar quando enfim nosso personagem dostoievskiano, talvez, posto por Dellani Lima deixa de se lamentar e se juntar à multidão abandonando a sua vidinha de ressentido largado pelos patrões. Quem sabe podemos ainda dizer: houve a farsa mas evitamos a tragédia. No entanto, tenho dúvidas, afinal como nos diz a música do filme Depois da Farsa: a cadela do fascismo está no cio e o martelo do juiz bate latindo.
Taciano Valério
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