“Nasci para ser salvo desse sonho de existir.”
- Frederico Machado
- 30 de ago. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 3 de mai. de 2024
Talvez seja o tempo em que vivemos, em que a sordidez dos homens no comando parece conspirar com a natural inevitabilidade da morte (em alguns casos, contribuindo para antecipá-la), ou quem sabe a falência de crenças em conceitos abstratos como felicidade,
segurança e paz de espírito; o fato é que nosso cinema parece cada vez mais propenso a narrativas introspectivas e trágicas, reflexões existencialistas em torno do vazio da vida. Ou talvez sejam apenas apreensões de cunho pessoal traduzidas em filme. Seja qual for o
caso, dentro dessa proposta, nenhuma forma ficcional é mais adequada a discutir o sentido da vida (e da morte) do que o cinema fantástico: o horror, o sobrenatural, o surreal. Um horror poético, mas não menos perturbador e angustiante.
Lamparina da aurora é o terceiro longa-metragem do cineasta maranhense Frederico Machado – os anteriores foram O exercício do Caos (2013) e O signo das tetas (2015) – e dá prosseguimento à estética contemplativa e de melancólica expressividade de seu cinema,
características presentes também em seus vários curtas (destacando Vela ao crucificado, de 2009, e Angústia, de 2016). É um cinema do olhar e para o olhar, no qual os diálogos são mínimos e quando surgem soam quase como uma violação narrativa. Em vez disso,
trechos poéticos surgem de tempos em tempos, narrados em off, acrescentando camadas e insinuando possíveis releituras das imagens.

Essa provavelmente é sua qualidade mais notável: o poder de síntese e o apuro estético com cada imagem, usando elementos mínimos, porém poderosos, aliados a uma montagem precisa – valorizando tempos-mortos e a câmera estática sem permitir que o
recurso chame a atenção para si; o estilo, e não o maneirismo – e um desenho de som primoroso, preparam um terreno no qual múltiplas interpretações não são apenas possíveis, são necessárias, desejadas. É um cinema que ganha mais vida quando suas imagens se desprendem da tela e ecoam no espectador.
O tempo – sua inexorável passagem em um cenário de paradoxal estagnação – é o tema de Lamparina da aurora (o filme inicialmente se chamaria “O tempo envelhece depressa”), elemento que se torna um poderoso aliado como instrumento de sensações de horror, manipulado com maestria por Machado, que o faz pesar como um fardo que aflige cada personagem. Um casal idoso – Buda Lira (Aquarius) e Vera Leite – segue uma enfadonha rotina caseira em um cenário rural, tomado pela apatia e pela quase total ausência
de ações. A casa range, parecendo prestes a ceder, como que esmagada pelas incessantes batidas do relógio de parede, em um ambiente (espécie de Casa de Usher nordestina) que de resto é de um melancólico silêncio.

A rotina é quebrada pela chegada do jovem – o filho que retorna? o duplo maligno? o anjo da morte? o próprio tempo materializado? – e a interação (também silenciosa) entre os
personagens se resume a encontros à mesa durante as refeições. O rapaz (Antonio Saboia, que atuou em O Lobo atrás da porta) surge com um ferimento na cabeça e sujo de terra, tal qual um morto recém-desenterrado. As relações entre os três personagenspermitem múltiplas leituras, que passam por todas as chaves, inclusive a religiosa: a mulher pode ser Lilith, sexualmente dominante na cena inicial e corrompendo o Homem (e, fosse este o caso, já seria um filme mais instigante do que Mãe!, de Aronofsky); visto pela escola expressionista, o intruso seria um doppelgänger [duplo] rejuvenescido do pai, que entra em cena para cobrar a vida de sua contraparte.
O único texto do filme são os poemas de Nauro Machado, pai do cineasta, lidos pelo próprio autor (falecido dois anos atrás,antes da conclusão do filme, gravou diversos áudios de seus escritos). Figura constante na obra de Frederico Machado, a participação de Nauro surge como uma espécie de Deus onipresente que a tudo observa e ressignifica; o trecho de um dos poemas sugere outra leitura da obra: a teoria indicaria um casal que tenta lidar com o suicídio do filho, cuja presença/ausência os condena à morte em vida. Nessa relação entre os três personagens, o filme também evoca, na visão deste crítico, um diálogo quase
mágico de texturas, conceitos e imagens com o clássico conto A Pata do Macaco, de W.W. Jacobs, na figura do pai aflito, atormentado pela culpa e arrependimento, a mãe alienada em sua amargurada felicidade, e o filho que retorna transfigurado ao lar, um desmorto
que traz consigo a tragédia, o castigo e a destruição. Em conversa com o cineasta, soubemos que este não havia lido a obra de Jacobs antes de fazer o filme; depois que a leu, percebeu muitas referências (“chega a ser assustador; muito estranho as ligações que a arte nos tece!”)
Se o horror é o estado de espírito coletivo que melhor representa a condição atual do brasileiro, o cinema nordestino sabe traduzir essa condição em filmes primorosos – obras de Petrus Cariry, Renata Pinheiro e Sergio Oliveira, Ary Rosa e Glenda Nicácio, Guto Parente e os irmãos Pretti, o pessoal do coletivo Vermelho Profundo, Pedro Severien e até mesmo alguns vislumbres de Kleber Mendonça Filho. O cinema nacional, que há décadas vem repetindo o processo do eterno renascer, parece, enfim, ter descoberto nesse ciclo o papel da morte.
Frederico Machado, que dirige, escreve, produz e fotografa todos os seus filmes à frente da sua empresa Lume, firma-se como um dos mais originais auteurs de cinema fantástico no cenário contemporâneo brasileiro. A atmosfera de horror existencialista de seus filmes, ambientados em cenários rurais e com personagens bastante comuns, reconfigura temas do cinema nordestino com uma linguagem de apelo universal, sintonizada com o cinema
moderno – e atestada pela exitosa carreira dos seus filmes em festivais internacionais. Os problemas sociais, o conflito de classes e a miséria não têm mais o caráter de denúncia: a preocupação éexistencial e os demônios são pessoais; a atmosfera de horror é palpável e a tragédia é iminente.
Carlos Primati
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