O Homem de Londres, Bela Tarr
- Renato Silveira
- 31 de mar.
- 3 min de leitura
A trama policial que está inserida em “O Homem de Londres” é a isca perfeita para pegar espectadores desprevenidos que escolhem o filme a que assistir baseados apenas na sinopse: Maloin (papel de Miroslav Krobot) trabalha em uma estação ferroviária e, certa noite, testemunha um assassinato, quando um homem desconhecido joga outro no mar e este morre afogado. Maloin se vê incapaz de salvar a vítima, mas consegue recuperar da água uma maleta que, mais tarde, descobre estar cheia de dinheiro. O homem de meia-idade, pai de família, decide não contar à polícia o que ocorreu e passa os próximos dias apreensivo quanto às consequências de ser o cúmplice de um crime.
Béla Tarr é conhecido por duas características principais em seu cinema: o arroubo estético dos planos longos e a reflexão épica que propõe (ou impõe) à plateia acerca de questões morais e existenciais a partir de situações mundanas. Não que o homicídio testemunhado por Maloin seja algo prosaico ou que Tarr o banalize: na verdade, a trivialidade do fato é apenas uma questão de ordem narrativa, já que as preocupações do filme são outras que não a de costurar uma investigação para chegar a um suspeito e, eventualmente, um culpado. Tal como é mais caro ao cineasta húngaro o suposto destino do cavalo de Turin a mostrar os últimos dias de Nietzsche, o que interessa a Tarr em “O Homem de Londres” é o peso da decisão de Maloin em ficar com o dinheiro que não lhe pertence. E isso porque, para Maloin, o crime também não é algo banal, mas um episódio que o abala emocionalmente. Do mesmo modo, ele se sente atingido pela condição em que a filha única (papel de Erika Bók) trabalha e se aflige por conta da sua própria condição de vida ou a que é possível que ele dê à família, formada ainda pela esposa, vivida por Tilda Swinton (em atuação sóbria e funcional, contornando sem excessos uma das poucas cenas que demanda alguma exaltação cênica do elenco).

A aparente falta de expressividade na face de Miroslav Krobot ao interpretar Maloin é compensada pela atmosfera criada em torno de sua rotina por Tarr e sua codiretora, montadora e cônjuge Ágnes Hranitzky, juntamente com a fotografia de Fred Kelemen e a música de Mihály Víg, onipresente na obra do diretor. A estética inteira de “O Homem de Londres” é um sintoma da percepção de Maloin – o mesmo que se pode dizer de outros protagonistas ou mesmo personagens secundários dos filmes de Tarr. Há no quadro uma múltipla subjetividade que faz com que, por exemplo, a cena em que Maloin vê o crime de sua cabine exponha o próprio cinema como mecanismo testemunhal, posto que é o nosso olhar em cena antes de se tornar o olhar de Maloin. Daí a longa duração dos planos, as múltiplas camadas que deles se desdobram, a sutileza com que a câmera plana pelos cenários em travellings ou movimentos rodopiantes afluírem para a representação, quase em tempo real, da percepção das pessoas na tela. Uma verdadeira (e necessária) afronta à sensibilidade desgastada do espectador que vive na era do imediatismo tecnológico.
Talvez, por trás da decisão por uma aposentadoria precoce da arte cinematográfica, esteja em Tarr justamente o sentimento de um certo anacronismo. O cinema de Tarr é o cinema da persistência. Seus filmes buscam poesia na inércia, posto que ele demonstra predileção por filmar pessoas, animais ou objetos parados ou quase isso, enquanto sua câmera percorre o que está adiante magistral e labirintadamente, como se ali estivesse como um corpo invisível em busca de si mesmo, a fitar a já mencionada suposta inexpressividade dos rostos ou a se transmutar no ponto de vista combalido dos personagens.
Ao bem da verdade, a levar em conta o viés subjetivo, a trama policial de “O Homem de Londres” caberia a um filme noir e ela não deixa de ser apresentada como tal aqui: o preto e branco, a luz e a sombra (e o próprio personagem-título, um estupendo MacGuffin) corroboram para essa impressão, que pode ser levada adiante se supormos que a narração em off do protagonista (acepção vocal do seu eu interior) foi trocada pelo silêncio de um demônio mudo, uma introspecção imagética do que a mente opera em decorrência da culpa.
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